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As contrapartidas culturais

Publicado em: 02/10/2017 |

“Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé,
não desconfiar, e, portanto estar tranqüilo.
Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.”
Clarice Lispector

 

Praticamente todas as Leis de Incentivo à Cultura que conhecemos, sejam aquelas que funcionam por meio de renúncia fiscal, sejam aquelas que criam editais, de uma forma ou de outra, sempre exigem que os proponentes de projetos culturais ofereçam contrapartidas para que sejam aprovados.

Muitas vezes, contudo, para os proponentes (que recebem dinheiro público para seus projetos!) isso é um problema.

Mas antes de sabermos se isso, de fato, é um problema, seria conveniente entendermos o que é tal da contrapartida cultural. Valendo ressalvar que em quaisquer das leis de incentivo a eventual previsão contrapartida social deve ocorrer sempre em âmbito cultural, ou seja, a oferta do proponente em projetos culturais até podem ter caráter social, mas ela deve necessariamente alcançar as pessoas para o ambiente cultural em que a respectiva Lei ou programa vigora. Assim, serve como contrapartida social em âmbito cultural, por exemplo, a distribuição de ingressos de um espetáculo para a comunidade local em que aquele teatro está inserido; mas, por outro lado, de nada adianta que a contrapartida em um projeto cultural, no mesmo exemplo, preveja a distribuição de remédios para um hospital de outro Estado.

Contrapartida social, em âmbito cultural, no nosso entendimento, é aquilo que se oferece para gerar acessibilidade, interesse e efeitos públicos culturais, digamos, como compensação obrigatória social por meio da qual alguém se credencia a ter seu projeto cultural aprovado (se atendidos também, claro, os demais requisitos legais) .

Problema recorrente nisso tudo é que se trata de conceito bastante vago e subjetivo, presente sempre em editais e em programas como a Lei Rouanet e ProAC, nos quais, a prestação de contrapartida é requisito básico, mas que, invariavelmente, é distorcido ou mal interpretado por proponentes.

Para tentar minimizar tal problema, a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo criou Resolução na qual tentou estabelecer suas próprias definições de “contrapartida” para efeito, ao menos, do ProAC. Diz a Resolução SC nº 48, de 3 de agosto de 2012, em seu art. 2º:

“Para efeito de atendimento ao Programa de Ação Cultural – ProAC, entende-se como contrapartida a oferta de um conjunto de ações visando garantir o mais amplo acesso da população em geral ao produto cultural gerado (plano de acessibilidade), objetivando com isso a descentralização e/ou garantia da universalização do benefício ao cidadão, sempre em consideração ao interesse público e a democratização do acesso aos bens culturais resultantes.”

E em seus parágrafos terceiro e quarto, vai além o art. 2º:

“§3º – No caso de contrapartidas com escopo de ação educativa ou de formação cultural, deverá ser apresentado projeto pedagógico ou temática e plano de atividades com currículo dos profissionais envolvidos, demonstrando experiência na área, indicação do número de vagas, locais, dias e horários de realização.”
“§4º – No caso de contrapartidas que prevejam a distribuição/doação de produtos culturais à instituição pública ou privada sem fins lucrativos, deve o proponente informar quantidade e perfil das organizações para as quais o produto será doado, incluindo justificativa da pertinência da doação e seus possíveis usos.”

Entretanto, ainda assim, tais termos continuam imprecisos, e passíveis das mais diversas interpretações subjetivas as definições e exigências expostas na mencionada Resolução.

O que não resta dúvida é que os proponentes que oferecem contrapartidas meramente sociais ou educacionais, deverão, no ProAC, demonstrar com clareza e com detalhes aquilo que dizem proporcionar. Não basta mais apenas declarar que “distribuirão ingressos do espetáculo para crianças de rede estadual de ensino”, como muitos fizeram por muito tempo. E que, claro, com essa declaração absolutamente vaga, na prática, não se comprometiam com nada, não cumpriam o prometido e, pior, ainda diziam, em sede de prestação de contas, que não aparece ninguém procurando pelos tais ingressos…

Mas o fato é que a declaração de contrapartida, seja para o ProAC, seja para outros programas, deve conter proposta clara e prática daquilo que o proponente vai proporcionar à população mais carente (ou sem acesso à cultura), mostrando que o projeto pretende devolver, assim, a este segmento da sociedade, pequena parte do que recebe em dinheiro público; e que deve ir muito além da mera vontade teórica de apenas afirmar conceitualmente que seu produto em si já seria suficiente para difundir, multiplicar e/ou propagar a cultura, o que, evidentemente, não só já é de conhecimento daquela Secretaria de Cultura, como também é o que se espera naturalmente do ProAC e dos projetos nele inscritos.

E o proponente tem que cumprir o que promete em seus projetos, coisa rara, muito rara…

A Lei Rouanet também exige, expressamente, a democratização de acesso aos projetos que são financiados por seus mecanismos. As propostas contrapartidas culturais também são indispensáveis para a aprovação de qualquer projeto, a teor, por exemplo, do que disciplina o Decreto 5.671/2006, em especial o inciso III de seu art. 27, que, expressamente, determina a democratização de acesso aos produtos culturais, impondo, por exemplo, a distribuição de obras e de ingressos gratuitos para beneficiários que atendem às condições estabelecidas pelo MinC. Ademais, no sistema normativo da Lei Rouanet, a contrapartida, que até pouco tempo atrás, podia ser livremente estabelecida pelo proponente, hoje, por conta da Instrução Normativa nº 01/2013, deve oferecer compulsória e necessariamente, no mínimo, 10% de ingressos gratuitos para a população de baixa renda. E, ainda, obrigatoriamente colocar a venda um lote de, no mínimo, 20% de ingressos a preços populares.

A contrapartida oferecida unilateralmente pelo proponente não pode mais mencionar apenas elementos subjetivos relacionados e/ou decorrentes do produto cultural. A contrapartida deve ser prática e, sobretudo, alcançar àqueles que não têm, ou não teriam, condições de ter acesso ao produto cultural pago com dinheiro público. E, para tanto, a Lei Rouanet passou a exigir ‘um mínimo’ para amenizar as distorções inúmeras vezes observadas em projetos caríssimos aos quais o público de baixa renda jamais teve acesso real.

Aliás, nesse sentido, vale frisar também que não basta ao proponente apenas declarar em seus projetos que vai distribuir ingressos gratuitos ou que vai oferecer oficinas disso ou daquilo ao público. Deve também, por óbvio, divulgar tais contrapartidas nos mesmos veículos que anunciará seus projetos e com um mínimo de visibilidade… Inúmeras vezes vemos projetos de teatro com orçamentos extremamente caros, com inúmeras rubricas igualmente caríssimas destinadas a divulgar o espetáculo em páginas duplas de grandes jornais, em páginas centrais das mais variadas revistas, em anúncios de rádios e em propagandas de televisão sem informar aquilo que, dentro dos projetos, têm grande destaque, as contrapartidas! Inacreditável e vergonhoso que proponentes destinem 20% dos custos de seus projetos de milhões em publicidade, mas se recusem, depois, a dar a mínima divulgação àquilo que prometem com estardalhaço nos projetos…

De outro lado, muitas vezes, o proponente, para fugir da prestação da contrapartida declara que distribuirá os dez por cento dos ingressos gratuitos para os “alunos das escolas públicas” sem informar como estes estudantes vão adivinhar que o espetáculo estará em cartaz e com ingressos a disposição deles… As vezes os proponentes oferecem ingressos gratuitos, sem quaisquer critérios,”para alunos de escolas públicas de periferia” que não têm a menor condição de se deslocar, à noite, para um teatro nas áreas nobres da cidade, cujo espetáculo acaba tarde da noite… Por isso, necessárias também as cartas de anuência das Escolas supostamente contempladas, cujos alunos serão beneficiados com os ingressos gratuitos. E, ainda, uma estratégia minimamente razoável para que tais alunos possam, de fato, ir ao teatro. Caso contrário, a mera declaração de uma contrapartida como essa será sempre ineficaz, infrutífera e inútil…

E, da mesma forma, a contrapartida oferecida tem que ser também de interesse do suposto beneficiário… Famoso caso de contrapartida indesejada e inútil foi a oferta de ingressos para”crianças de escolas públicas” para espetáculo adulto de stand up comedy que iria ocorrer em um bar de São Paulo e que começava a meia noite! Evidente a inviabilidade da contrapartida! Como pensar em oferecer ingressos para uma peça adulta, a ser realizada em um bar, a meia noite, para crianças?

Outro exemplo de oferta de contrapartida ineficaz foi aquela declarada por um proponente que propunha uma exposição de artes plásticas no saguão de um teatro e que declarou como contrapartida que, depois, iria doar os quadros expostos para o MASP, como se o mais importante museu paulista tivesse interesse ou condições de receber tal “doação”!

Também comum a proposta em que o proponente oferece como contrapartida por seu projeto a oportunidade do público refletir sobre a arte resultante do projeto! É verdade que a arte tem como virtude e compensação natural o pensamento sobre ela e sobre seus reflexos. Assistir um espetáculo de teatro com preços menores, eis que financiada com dinheiro público, em tese, também já é uma contrapartida. Mas para efeito das leis de incentivo, dos programas e dos editais culturais existentes essas vantagens e virtudes não são suficientes. Deve haver também uma oferta prática que fomente significativamente as artes, a formação de público e a real democratização de acesso à cultura. E, por isso, a contrapartida tem que estar relacionada com o próprio produto cultural e não somente com as expectativas conceituais dele resultantes.

Em esfera municipal, aqui em São Paulo, no programa do Fomento ao Teatro, em que os proponentes normalmente são mais maduros e culturalmente mais responsáveis, até porque a própria Lei nasceu a partir dos anseios dos artistas, observamos, não raras vezes, que muitos ainda acreditam que a contrapartida é o próprio espetáculo a ser oferecido à cidade. Ou as próprias pesquisas teatrais que, em um segundo momento, resultarão em espetáculos melhores para o público. Mas nem nesse caso tal entendimento pode prevalecer, já que, em se tratando de um Edital, em que apenas alguns dos proponentes serão contemplados, muitas vezes, dentre projetos excelentes, a melhor contrapartida pode servir como critério de desempate.

Tudo isso acaba mesmo sendo um problema e um estorvo para os proponentes, já cheios de responsabilidades, de preocupações de produção, e de dificuldades em captar recursos para viabilizar seus projetos. E eles ainda têm que suprir a deficiência do Estado, que não oferece, como deveria, o verdadeiro acesso às artes e à cultura de qualidade. Ora, de um lado, há a burocracia e dificuldades para a aprovação de seus projetos a custos compatíveis, e, de outro, a obrigação de fazer com que esses projetos efetivamente consigam democratizar o acesso público e gratuito a eles, mesmo quando o público-alvo são as pessoas das altas classes sociais. Mas, ao mesmo tempo, incoerente que leis de incentivo sejam destinadas e pagas com o dinheiro público apenas para as pessoas que já têm acesso a qualquer “produto cultural”. As contrapartidas servem, então, como forma de equilibrar minimamente essa inacreditável equação.

Portanto, se é um problema incômodo e desagradável para o proponente ser obrigado a oferecer contrapartidas às populações de baixa renda, é problema ainda pior para elas que pagam pelo projeto dele, sem que tenham qualquer chance de vivenciar pelo que estão efetivamente pagando. Irônico que o proponente não é obrigado a fazer seu projeto através de Leis de Incentivo. Ele pode, se quiser se livrar desses aborrecimentos, fazer todo projeto com seu próprio dinheiro! Mas se o projeto é pago por meio de leis de incentivo, significa dizer que o dinheiro não é do proponente e nem de seus patrocinadores: é dinheiro público. Assim, se o proponente quiser desfrutar desse direito deve também, em contrapartida, arcar com o dever dele decorrente. E essa contrapartida tem que ser cultural.