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Arte e Aldeia

Publicado em: 15/03/2022 |

Chá e Cadernos 100.81

Mauri Paroni

Há quem tenha podido estudar geopolítica pelos escritos do historiador inglês Arnold Toynbee (18889-1975) e do ex-chanceler estadunidense (1923- ) Henry Kissinger sobre o modo russo de ver a história, como o ex-chanceler Celso Amorim. Há quem tenha podido fazer um passeio pela memória dos poucos momentos que tive a ventura de acidentalmente pisar em solo russo, e acostá-los às privilegiadas e também acidentais horas de leitura de clássicos eslavos. Entre sonhos e devaneios, estendo a proposta a várias divagações sobre alguns ucranianos excelentes, desculpando-me pela velocidade com que literalmente “liquidei” os autores e ideias citadas abaixo.
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Na Declaração Universal dos Direitos Coletivos dos Povos, está escrito: “Toda comunidade humana com referência comum à sua própria cultura e tradição histórica que tenha sido desenvolvida dentro de um território geograficamente determinado (…) constitui um povo. Todo povo tem o direito de se identificar como tal. Todo povo tem o direito de se afirmar como uma nação”.

Sendo nação coisa de geração natural e povo coisa de geração política, a cultura provê política a uma nação; mas esta pode fomentar nacionalismos e fanatismos de multidões de internautas de uma cultura política de guerras.

Quem comete, acusa: portanto, o autocrata Wladimir Putin pune quem chama de guerra a sua proclamada “operação militar especial “. Pelo menos metade da população russa não quer essa guerra – nenhuma população deseja tal desgraça -, sobretudo uma guerra com quem faz parte da própria cultura. Autocratas atuais promovem o ódio na coincidência de etnia com língua. É evidente no detalhe, no milímetro, na capilaridade; é resultado da influência de oncogurus como “Steve” Bannon, o inominável Olalixo, o “culto” Alexandr Dugin e outros mais. São mentalmente responsáveis pela condução de políticas de estado promotoras de crimes de guerras, infanticídios, estupros em massa, genocídios e carestias assassinas de milhões de pobres.

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Para não trafegar – demais – no terreno da paixão, tento ser o mais racionalmente crítico possível. Um artista que lida com a intuição, com a empatia das relações de alta tensão, longe de uma dialética aceitável. Difícil equilíbrio. Tento. Constato que o atual líder ucraniano Volodymyr Zelensky é um líder reacionário, ressentido e patológico que, provocado pelo inimigo, prefere uma guerra de resistência antes de negociar numa mesa. Assume o paradoxo de uma histórica práxis de invasões … um invade e outro “deixa-se” invadir.

No artigo anterior, pelejo sempre tomar partido. Preciso o que disse, lembrando Albert Camus na guerra da Argélia. Em Estocolmo, pressionado pelos jornalistas, o escritor declarava: “Neste momento, bombas estão sendo lançadas contra os bondes de Argel. Minha mãe pode estar em um desses bondes. Se isso é justo, prefiro a minha mãe”. Evidente, pessoal, poético, não ideológico, não por isso apolítico.

Lembro Ivam Cabral, diretor executivo da SP Escola de Teatro, num artigo sobre a sua passagem na Ucrânia: “Guerra é guerra sempre e temos que tomar partido, sim. Mas, sobretudo porque roubam de nós as nossas histórias. Porque, em 1993, eu era um jovem de 30 anos e tinha a expectativa do porvir, mais nada. Tirassem isso de mim, naquele momento, e eu não seria nada.” [ https://avidanocentro.com.br/blogs/ucrania-liberdade-satyros/ ]

Deveria citar muitos mais ainda, seria uma lista infinita sobre o valor da vida e das ideologias libertárias.

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Karl Marx declarou o que mesmo sobre isso? Atribuído a ele, li em algum lugar: “O povo que subjuga outro forja suas próprias cadeias.” É fato real o cancelamento da cultura do oprimido, do explorado. É regra teórica da luta de classes. Opera pelo genocídio, pelo estupro, pela guerra em qualquer tempo e território da história humana.

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Do Ucraniano Lev Trotsky (1879-1940)

Despertado no meio da noite por um pesadelo em que Trotsky era levado aas pressas ao hospital depois de ser golpeado à traição por um agente mexicano a soldo de Stalin, em uma atitude respeitosa da prática do surrealismo que tanto prezo, garimpei na rede estas frases a serem lidas pela lente do contexto da primeira metade do século vinte; publico as aqui por dever de provocação cultural; por uma velha empatia com dois velhos amigos trotskistas jà falecidos. A eles meu agradecimento. Ajudarão na conclusão deste artigo.

“A vida é bela. Que as futuras gerações a livrem de todo mal e opressão, e possam desfrutá-la em toda sua plenitude.”

“Ela virá, a revolução conquistará a todos o direito não somente ao pão, mas, também, à poesia.”

“Expor aos oprimidos a verdade sobre a situação é abrir-lhes o caminho da revolução.”

“Num país em que o único empregador é o Estado, oposição significa morte lenta por inanição. O velho princípio ‘quem não trabalha não come’ foi substituído por outro: ‘quem não obedece não come’. – Se referindo à URSS”

“Morro com a certeza inabalável no futuro comunista da humanidade. Essa certeza me dá hoje uma força que nenhuma religião poderia dar.”

“A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária…. A crise de direção do proletariado, que se tornou a crise da civilização humana, somente pode ser resolvida pela Quarta Internacional.”

“A violência bem organizada parecia ser para ele a menor distância entre dois pontos.- Sobre Stálin”.

A esse ponto, eu teria respondido àqueles dois colegas citando Brecht, pelo qual erro fulgurado quando na universidade – e que me fez escolher definitivamente a via do teatro. Haveria muito a falar de Bertolt Brecht num contexto como o nosso atual; e não se pode cita-lo sem estabelecer diferenças mínimas com outros contextos. Deixo, porém, este que sempre o coloca em diferença quanto a quem gosta de moralizar o senso comum para neutralizar a arte que afeta a falta de tensão típica da mediocridade de massa que oprime nosso tempo. De Escritos sobre teatro: “Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver.”[Alle Künste tragen bei zur größten aller Künste, der Lebenskunst.]

Diego Rivera, Homem no Cruzamento (detalhe), afresco, 1934: Trotsky pode ser visto segurando a bandeira vermelha da Quarta Internacional, com as palavras vários idiomas “Proletários do Mundo Unidos na Quarta Internacional!”; Engels e Marx podem ser vistos nas proximidades.
Foto: Éclusette – México – Bellas Artes – Fresque Riviera

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Guerra traz sofrimento e morte. Mas morte e sofrimento , em arte, podem também trazer a vida de volta. Desde que me senti artista, tento, numa espécie de café antes do café, meditar e lembrar quem, onde e porque maus matam e cancelam a arte, a cultura, a vida. E o que isso marca. E agradecer os que morreram para me exigir um sentido de estar vivo e conseguir trabalhar.

 

Tumulo de Brecht e Helene Weigel em Berlim***

Esta guerra marca o cancelamento que acabou na hegemonia mundial de um lado só, estabelecida de quando caiu o muro e dissolveu-se a União Soviética. Faz mais de anos que se debate a multipolaridade com respeito ao direito internacional, isso também diz respeito à cultura que se desenvolve num macromodelo de relações entre culturas de uma só para o “resto”. Cortando em miúdos: vamos ter que mudar as lentes dos óculos para ler diferentes contextos e visões, olhar para os lados e para a situação dos países mais pobres e em desenvolvimento.

Como adverte Celso Amorim, uma crise de alimentos de dimensão global que vai redefinir muitas realidades de pessoas além daquelas refugiadas; não só da Ucrânia, mas congoleses, venezuelanos, bolivianos, iemenitas ou onde houver situação de pobreza. Lembrá-los, literalmente ou não, mas lembrá-los. No sonho da arte, um Inspetor Geral os lembraria. Criticaria a dimensão cadavérica e patológica da gestão de interesses legítimos de estado que viram morte. Até religiões tratam disso. Muitos budistas já não evitam o consumo de animais, mas conscientemente agradecem a vida de um eventual animal que o alimentou a custo de sua vida. Haverá sempre um ritual acima da religião. Haverá sempre uma arte. Haverá até o russo Lev Tolstoi (1828-1910) numa fogueira ritual aborígene: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”.

Tolstoi e Sofia Talstaja

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Para terminar este pequeno passeio pela memória: lembro o perseguido – ucraniano, mas não por isso – Nikolai Gogol (1802-1859). Perseguiram-no porque condensou, como nenhum outro escritor, os malefícios do czarismo em mazelas, injustiças, desumanidades, loucura e provincialismo. Dele, dirigi um experimento dramatúrgico de montagem completa, para a centenária universidade de Pavia, Itália, “O Inspetor Geral”. De olhar desesperadamente cômico, é especular à realidade de países vastos territorialmente como o Brasil. Um escroque chantageia uma prefeitura do interior profundo e acaba achacando um diretor de escola corrupto, um diretor de hospital que desvia dinheiro e causa mortes, um chefe de correios que viola tudo o que passa por ali. Enfim, toda uma administração corrupta e guiada por um fanfarrão ignorante, enganado pela mulher e pela filha. Lembra alguma coisa?

 

Nikolai Gogol – Dagerreotipo de Sergej L’vovič Levickij, 1845

 

Da montagem de O Inspetor Geral no Teatro de Arena em 1966

O inspetor geral foi um carro chefe do Teatro de Arena, com Augusto Boal (teatro do oprimido). Isso ajudou a imortalizar o talento eminentemente político e realista do ator Gianfrancesco Guarnieri. Traduziram e montaram a peça em 1966, já sob a ditadura militar. Texto que irrita funcionários estatais ainda e sobretudo hoje, ao reduzi-los a miseráveis corruptos mesquinhos de pequenos poderes; até hoje aquela energia ainda pulsa na sede do teatro.

 

Palco do Teatro de Arena

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Pesquisa:

https://operamundi.uol.com.br/historia//hoje-na-historia–morre-o-escritor-albert-camus

Conversa entre Jamil Chade e o ex -ministro da defesa e ex chanceler Celso Amorim sobre a guerra na Europa. [ https://www.youtube.com/watch?v=nToOnRjZCDw ]

Wikipédia

Bertolt Brecht, Schriften zum Theater, ‎Siegfried Unseld, Suhrkamp Werlag, 1957