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Aqui está o teatro contemporâneo. (Não nos desesperemos)

Publicado em: 26/07/2021 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.53

Na infinidade.

[A melhor imagem de um átomo até o momento foi obtida por cientistas da Universidade Cornell (Estados Unidos) com a ajuda de um microscópio sem lentes e um algoritmo avançado, capaz de reconstruir imagem a partir dos padries resultantes da interação do objeto com um feixe de elétrons. Para obter a foto, os cientistas usaram um microscópio eletrônico para ampliar em 100 milhões de vezes um cristal de praseodimio (Pr), um tipo de mineral. (…) A técnica usada e chamada de pticografia. O resultado foi uma imagem de uma precisão imensa, da ordem de picometros, ou um trilionesimo de um metro.]

De uma reportagem de Everton Lopes Batista, publicada na Folha de São Paulo em 2021

Imagem mostra reconstrução de imagem de átomos de um cristal de praseodímio ampliado em 100 milhões de vezes – Divulgação/Universidade Cornell

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A melhor e mais sintética dramaturgia entre ciência e teatro que conheço foi composta por Bertolt Brecht (1899-1956) em Vida de Galileu. Ideia inicial na Dinamarca em 1938, quando da primeira fissão do átomo de urânio, reescrita em Holywood com Charles Laughton (1899-1962), depois de Hiroshima, com versão definitiva de Ernst Busch (1900-1980) já no Berliner Ensemble.


Versão de Giorgio Strehler de Vida de Galileu, no Piccolo Teatro de Milão


Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas revivem a mesma peça de Brecht em “O que mantém o homem vivo”, foto Lenise Pinheiro

Conheci a de Strehler (1921-1997), que o tornou embaixador do Berliner para o italianos. Vindo de Trieste, cidade de veia alemã, o diretor traduzia Brecht junto com o ator, escritor e estudioso Ettore Gaipa (1921 -1993). Conto o que vi: este era um ancião sempre enfiado numa salinha sob o palco do teatro, tipo o vovô da família monstro. O Berliner e sua prática de manuais de encenação oficial não foi o responsável pela beleza eficaz das encenações brechtiana no Piccolo Teatro. Muito se deveu às traduções e estudos de Gaipa. Para traduzir o Brecht escrito é necessário um artista de palco e um poeta, porque ele não escreveu somente falas, mas poesia, como sempre fez com as suas versões de tramas pré-existentes. Não é possível provar, mas o tempo deixa claro: Strehler foi o poeta cênico e Gaipa o poeta literário. As discussões e estudos entre os primeiros e Paolo Grassi foram boa parte do sucesso daquele projeto de teatro publico que ia além do misticismo empregatício. Muitas vezes o cenógrafo Gianni Ratto mencionou isso ao me contar porque saiu do Piccolo Teatro.

Essa é mais uma estória de palco sobre a profundidade das raízes do convívio artístico como única semente que floresce de verdade no teatro. Quem teve a experiência privilegiada de se apresentar todos os dias da semana – e não somente aqueles dias para habitues -, sabe a diferença. Quem frequenta uma escola sabe que é necessária a prática diária; é como um casamente careta .em que se desconstrói a própria caretice.

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As estruturas são correspondentes no infinito; por elas, retornamos ao mundo do infinitamente pequeno, do cálculo infinitesimal, silente, que serpenteia um raciocínio preciso, interno, que não é Deus. Num alemão bíblico recriado por Brecht, o pequeno monge pergunta a Galileu, telescópio nos olhos, onde estaria Deus. Galileu responde que naquele céu preciso que ele observava, não estava.

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Na pandemia, um teatro de pequena estatura não recria, mistura ou copia, mas cultua altares de plástico. Gente que diz “encenei Kantor” acha que impressiona, mas revela a ignorância dogmatica da meio cultura, do dogmatismo vazio. Da serie “ reconstruir a commedia dell arte.” para declarar que um cadeirante não pode “ensinar commedia dell’arte”. Não pode mesmo porque esta não existe mais há séculos. Ensina outra coisa, coisa viva.

Quem gosta de teatro – a maioria do gênero humano – espera reconhecer-se na representação que escolhe participar; visto a destruição a que se tem assistido, temos a oportunidade de refazer um teatro necessário. Isso passa por uma mudança de mentalidade, que nasce em escolas onde há pedagogia de criação de linguagem, de dá voz a quem foi alijado de si ou do grupo humano que representa.

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Para precisar ou definir melhor o que entendo por reconhecer-se, uso a memoria que não me cansava de observar, dentro da catedral de Milão, a migrantes africanos árabes e filipinos, viajantes e turistas. Entravam na catedral em busca de conforto religioso. De repente, topavam com a escultura de São Bartolomeu e a visão extremamente terrena e absolutamente tridimensional de suas veias, músculos e anatomia. A autoria é de Marco d’Agrate (1504-1574). Observava-os a admirar a estatua. Eram tocados por sua narração e performance estática, superavam o próprio contexto de sofrimento; viviam momentos valiosos numa situação de fragilidade. O reconhecimento da própria humanidade era evidente depois de dez minutos de exposição àquela obra de arte.

Esse reconhecimento, é próprio do modo bíblico e materialista dos textos de Brecht; mesmo ele citava, em A Vida de Galileu, “leio a bíblia” e como Lutero a traduziu ao vernáculo, organizando mutirões de alfabetização para que cada um lesse e interpretasse o que e como queria. Estamos longe da farsa propinada de certos templos evangélicos atuais, vexados de uma gramática reacionária e escravagista.

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Esfolamento foi o martírio que fez de Bartolomeu um santo. Foi a causa de sua morte; morte não se pode fingir. Morre-se, sem que seja possível repetir o ato – somente a alegoria.

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Quando se passa horas em redes sociais levando a sério projeções pessoais de outros, nasce a morte por remoção, por negacionismo, por confusão de limites. Nasce o assassinato e a guerra, coisa que o palco sabe evitar; coisa que experimentamos nesta pandemia. Telefones e redes manipulam o nosso quotidiano de forma surda e onipresente. Tem-se muito o que aprender de uma perdida oralidade ancestral ainda possuída por povos oprimidos. Aprendizado também presente na alegoria estatuária do são Bartolomeu de Marco d’Agrate; também no horror da matadora Caterina de Medici (1519-1589). Na chamada Noite de São Bartolomeu, a rainha papista organizou o massacre sistemático de protestantes (huguenotes). Foi mais de uma noite. Durou meses. A rigor, foram decênios, com ápice na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648).

Bertolt Brecht, numa fala do protagonista de A Vida de Galileu, sintetiza: “ A Alemanha é um açougue e os homens se estraçalham com versos bíblicos nos lábios.”


A estréia do filme “Mutter Courage und ihre Kinder” no cinema “OTL”, em Berlim, fevereiro de 1961
foto: Irene Eckleben / Bundesarchiv


Uma manhã perto dos portões do Louvre Por Édouard Debate-Ponsan no museu de Clermont-Ferrand

Quando Catarina vai ver a sua obra de ódio.


Carl Huns (1831-1877), A véspera do massacre do Dia de São Bartolomeu, de 1868
Óleo sobre tela, fonte Wikipédia

Nesta pintura, um nobre “senhor” católico reza e prepara-se para mais uma noite onde matará pecadores, para o próprio bem deles, crianças sobretudo. A fábrica de santidade e de silencio dos assassinos em nome da fé – controlada pelo poder com a espada da ignorância do fanatismo. Os huguenotes responderam com mais fanatismo. Guerras se fabricaram, como a já citada Guerra dos Trinta Anos contada por Brecht em Mãe Coragem e Seus Filhos.

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Alguma coincidência? Vejamos se esta aparente narração pessoal de um quotidiano parco de nossos dias não pode virar uma guerra persecutória:

[ Repassei os meus cadernos de infância. Percebi que estavam guardados, todos, com muitíssimo cuidado. Estavam numa pasta, esquecidos no fundo de uma espécie de baú. eram cadernos de caligrafia, de quando nos alfabetizamos. Por que em terceira pessoa do plural? Porque havia somente o dos meus dois irmãos. Um quarto morreu aos dez meses, vítima de um mau pediatra. Veio à mente que um deles assumiu a sua homossexualidade com coragem, sofreu discriminação de nossa mãe, não de nosso pai, que morreu de câncer em velhice recém estreada. Um irmão sofreu violência do outro que, pela ordem: foi provedor de dinheiro ilícito a políticos do Centrão; corrompeu-se; hoje, recebe farta pensão de uma estatal, sem ter jamais trabalhado; apoia o hodierno presidente animal; é amigo de um tal de Heleno; saía com travestis para ser comido por alguma figura que não o pusesse em xeque, ao ser invariavelmente violento; não pagava a prestação sexual. Para manter a aparência macho hetero, casava-se – invariavelmente separando-se – com mulheres de condição financeira abaixo das suas, sob propinas e benesses de consumo; explorava-as; arranjou, por fim, uma com filhas pequenas; comprou-lhes o afeto; típico de uma odiosa “italianada classe média”, não fala meia palavra da língua, mas por elas faz-se chamar “babbo” como os mafiosos; ainda como eles, ameaçava e ameaça veladamente assassinatos não só a mim, mas a quem lhe se oponha projetos; manejava e maneja coisas como inventários do tio e da mãe por meio de com instrumentalizações sutis e sub-reptícias; cultiva uma personalidade psicopata, liso como uma salamandra. Por fim, custeou a quimioterapia veterinária do linfoma de sua cadela, mas não o do linfoma da mãe, de quem fez um sequestro branco da casa de repouso para onde reside, num condomínio ermo do interior. A cadela teve velório e caixão caros. Queixou-se de que nenhum amigo a ele compareceu. Quanto ao funeral da mãe, pediu empréstimo a amigos para custeá-lo, alegando dificuldades financeiras, não obstante receptor uma altíssima pensão fraudulenta aos danos do Estado. Mantém as cinzas da mãe e da cadela sob sua custódia.

Isto posto, não encontro no espolio da casa qualquer caderno de infância meu. Por minha condição física, e por sua prevaricação, não consigo entrar na casa. Nada de nada. Cadernos de quando nos alfabetizamos. Percebi hoje, guardado naquele baú, o vazio da recusa materna de minha existência, o cis, o hetero. Não existe mulher mais machista que a mãe que estabelece tal projeto de competição entre filhos. Uma espécie de Queen Lehar. Se eu não fosse ateu, seria o diabo numa mesa branca tentando falar diretamente com a alma de Lacan.
]
Adiante no horror do real: o olhar desesperado da trans que estava com ele – sempre aquele “babbo” mafiosamente doméstico – , apresentada no encerramento do inventario da mãe como “minha noiva”. O olhar… a advogada, o escrevente estavam indignados com a presença da trans, humilhada naquele antro asseado por reacionários pequeno burgueses. Gente horrível, miserável. Parece conto russo, meio Tchekhov, meio Gogol, meio Gorki, meio realismo socialista.
Logicamente, tanto preconceito pode criar uma guerra. Basta centenas de milhares – como há – de atitudes discriminatórias assim.

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Efígie de D’Annunzio num selo do Estado de Fiume

Mais uma micro crônica que lembra a guerra que se está por detonar:

Passei alguns dias em Lignano, nas cercanias de Trieste, numa praia onde só havia turistas da Áustria. Trieste foi o porto mediterrâneo do extinto Império Austro Húngaro. Foi um império multinacional, terminado com a primeira guerra mundial, de cem anos antes. Naquela praia havia somente gente teutônica. Exceção: Havia ambulantes africanos, também de muitas etnias. Um deles, da Costa do Marfim, carregava esculturas em madeira europeia – pinho. Eram finas obras de arte, não notadas no calor praiano e na alienação vacanceira que ali imperava. Sua arte despertou-me maravilha: a aura de uma elegante gazela e suas filhotes, unidas como metáfora de cordão umbilical. Arte popular naïf tanto quanto as reproduções da santa ceia de Leonardo nas casas cristãs; mas sem plástico, síntese da maternidade, do seio, do tempo, da suspensão entre desejo e satisfação, entre fome e alimentação, da função do corpo e do sentido, da paz por ser construída. Tinha forma refinada, delicada, precisa, numa quarta dimensão concreta.


Desembarque de migrante numa praia italiana. Foto: ©Ap,Reuter

O escultor a oferecia a olhares negados enquanto outros migrantes ofereciam badulaques (chineses) e faziam bons negócios. Ele notou meu olhar para a escultura e chamou sua companheira por seu telefone (chinês); esta chegou meia hora depois, conversaram animadamente, e me ofereceram a escultura. Eu lhes ofereci todo o pouco dinheiro de que dispunha; custou para aceitaram a venda. Faziam gestos mímicos elegantíssimos que me fizeram notar os seus olhares esculpidos na relação entra as duas cores da madeira de pinho. Nenhum verniz, mas simplesmente o olhar de suas mãos habilidosas eram o acabamento daquela obra.

Milênios de história da arte foram resumidos naquela praia surda entre nossos olhares. Nestes, a comunicação entre o real e a metáfora – ali estava a arte, a mímica e o teatro. Aquele escultor, em sua simplicidade apolínea, realizou o que não conseguiu D’Annunzio, o poeta que fundou um estado ditatorial “artístico” sob o fascismo – por impossível. Um Nietzsche em Trieste.

A escultura popular subsaariana sobre madeira escura.

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Estórias como essas trazem a pasta dos massacres diários urdidos na net para pulverização da Necropolítica sobre as minorias. Fotos que nos chegam de quem a quis ou não quis ver, definem melhor esse discurso. Seu gesto alegórico pode ser repetido em protesto; pode ser removido, mas jamais poderá ser ignorado e força uma posição de quem o vê.


net @twittter

https://twitter.com/_SJPeace_/status/1267141011236687872/photo/1
https://veja.abril.com.br/mundo/policia-de-miami-se-ajoelha-e-reza-em-protesto-contra-morte-de-floyd/

De qual posição se assume ou se quer evitar, indaguei-me em “Aqui ninguém é inocente” livro completo aqui

[Na utopia de “Aqui Ninguém é Inocente”, contraio um débito com a experiência budista: cada personagem, cada ator, cada espectador elabora um seu próprio e único pen,samento, fala ou silencio, e enxerga o espaço onde isso acontece como o mesmo do seu cotidiano pessoal. O fazem dispostos em círculo, leigos. Nenhum olhar é indiscreto. Professam a subversão ateísta sugerida por Silesius: o olho com que deus os enxerga é o mesmo com o qual deus é enxergado por eles. Big Brother não os alcança.

Qual maior revolução posso querer do teatro? Vivemos o preciso tempo em que se nos apresentam dois projetos distintos de História: laicismo versus teocracia. O antagonismo entre eles começa a adquirir contornos mais nítidos na inversa proporção da indefinição de com quais as armas e em que lugares a briga se desenrola; cada vez menos há clareza de quem são os agentes da guerra contemporânea. A única coisa certa é que nos tornamos parte dela não por nossas biografias, mas pela geografia que nos coloca em meio a atentados terroristas e tiroteios banalizados. A prática da interrogação sobre os limites entre ficção e verdade, arte e barbárie, geografia e biografia, são funções que o teatro, e só ele, pode ainda desincumbir-se com baixo custo, sem guerras ou esquizofrenias coletivas.
Justifica a urgência de nossa existência artística. ]

Peço vênia pelas autocitações e atenção a uma última elucubração; com a pandemia, os isolamentos, o telefone, a vida on line, o teatro on line. A realidade da vida chega à telinha, à aula, à rede social, às relações afetivas e vitais, por um delivery alimentar de algum lugar que não conhecemos, direto para a minha mente de narratário. A vida imita a realidade, e na sua alegoria reside o teatro contemporaneo.