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“Aquele Cara” [in memoriam]

Publicado em: 12/07/2023 |

Cabeçalho com o escrito "Chá e Cadernos" e abaixo uma xícara de chá.

Cabeçalho da coluna “Chá e Cadernos” de Mauri Paroni

Mauri Paroni

Tensão. Greve nacional de bancários, 1979, outono da ditadura militar. Um protesto de trabalhadores na Praça da Sé foi violentamente reprimido diante de nós, estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Havia um grupo semi carnavalesco estranhado por toda aquela gente. Era o grupo do Teat(r)o Oficina que, repatriado, marchava em fila indiana chefiada por um quixotesco carismático a cantar em meio ao coro: Zé Celso. O grupo cercou alegremente a truculência na praça com um abraço simbólico – jamais visto. “Criar, criar, pode-e-er popula-a-ar, criar, criar, pode-e-er popula-a-ar…” – Agregava e simbolizava um cristianismo teatral: distribuía pãezinhos e fartos goles de vinho de garrafão. José Celso “Quijote” Correa entoava versos brechtianos sobre pirâmides sociais injustas. Estudantes entoavam o clássico “abaixo a ditadura, abaixo a ditadura!”, sob a rítmica borracha da PM; açodados, pregadores religiosos portadores de improváveis paletós e bíblias, vociferavam: “Greve é ‘bándalishmo!´” (sic), “greve é obra do capeta!”, “respeitem o Senhor” – Tudo ornado com variadas maldições e unções.

Fiquei enfeitiçado por aquela linha humana circundante da Praça da Sé significada culturalmente de novo. A manifestação das Diretas Já, marco da redemocratização do Brasil, fora antecipada de anos; mais de um milhão de pessoas foram gritar ali em 1984. Se artistas são antenas sociais intuitivas, o Zé foi – sempre será – seu radar infalível.

Fotografia colorida de José Celso durante audiência pública realizada no Teatro Oficina

José Celso durante audiência pública realizada no Teatro Oficina | Foto: José Patrício/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

Em lados opostos do Atlântico, mantivemos muita curiosidade recíproca. No ano de 1987, estudante na Escola de Arte Dramática de Milão, deparei na Folha com “Língua de Montanha”, texto marcadamente político de Harold Pinter (1930-2008), traduzido por Otávio Frias Filho (1957-2018) e Marcos Renaux. Tentei encená-lo entre as rotativas do jornal, mas o departamento industrial não permitia gente estranha naquele maquinário perigoso, delicado, caro. Angustiado e apreensivo, tendente ao radicalismo dos inícios, procurei Zé Celso. Pedi conselhos. Ele disse para seguir a intuição de qualquer jeito. Especulei sobre o que poderia significar o produto físico das rotativas. Ele sorriu, ponderando que as máquinas e o texto eram fatos reais. Que lidasse com o todo do que estava enfrentando. Discreto, foi a um ensaio e a uma apresentação. Disse que tudo foi urdido sob ligações também originadas no Largo de São Francisco, via comum do começo de artistas e gente política.

Fotografia colorida das antigas rotativas da Folha de São Paulo

Antigas rotativas da Folha de São Paulo, hoje desmontadas | Fonte: folhapress – Zanone Fraissat

Fotografia colorida das antigas rotativas da Folha de São Paulo

Antigas rotativas da Folha de São Paulo, hoje desmontadas | Fonte: folhapress – Zanone Fraissat

O círculo do sonho real expandiu-se como mágica. Arranjei, na mesma Folha de São Paulo, algumas toneladas de jornal encalhado: potentes luzes de flash como instantâneas de fatos “reais” tiradas pelo fotógrafo Hilton Ribeiro; montei um elenco semi italiano com gente de circo brasileiro, como Raul Barretto e Alexandre Roit, super jovens. Adriana Ramos, outra ex-aluna da São Francisco, cuidou da aparência das personagens. Construí uma dicção delicada, crua e simples que ainda uso. Aquilo não cabia nem num palco convencional, nem nas rotativas da Folha. Em uma semana de estudo e cinco ensaios com muita disposição, vivemos a coisa nos pátios externos do Sesc Pompeia, que nos abrigou. Beiramos o que hoje se chama de pós dramaticidade. A montagem fora muito beneficiada por um mentor generoso e didático: Zé Celso.

Fotografia colorida de Renato Borghi e Mauri Paroni no Duelo entre Timão de Atenas e Apemanto

O duelo entre Timão de Atenas e Apemanto. Renato Borghi e Mauri Paroni. Direção de Elcio Nogueira Seixas e Luciana Borghi

Fiquei lisonjeado quando ele me escreveu após alguns dias, buscando informações sobre Adolfo Celi (1922-1986), um dos diretores do Teatro Brasileiro de Comédia. Anos depois, entendi aquele gesto quando de uma réplica de “Cacilda!”. Declarou, do palco do Oficina, “ali está aquele cara que traçou o percurso inverso do Celi, que veio e voltou. Inverso, mas o mesmo”. A isso acrescentou pesquisas parecidas em périplos europeus, saltos orientais e africanos. Tal vivência truncada concluiu-se nos camarins de Renato Borghi, Luciana e Elcio Nogueira Seixas na última remontagem de O Rei da Vela [Oswald de Andrade ]: “Olhaa! aquele cara do Shakespeare… fez o próprio espírito do bardo presente numa cena inesquecível… o duelo entre Timão de Atenas e Apemanto”. Contaram-me que ele não se reputava mais um diretor mas alguém que “fazia magia” (Sic). Disseram que ele repetia isso quando lhes falava de Shakespeare. Fico sempre grato e emocionado com isso, vindo de um diretor que virou mago também. Zé Celso, in memoriam, assume a dimensão mitológica do demiurgo que, na magia do teatro, vige numa memória afetiva que sobrevoa o Atlântico.

Fotografia colorida da estreia de Terceiro Sinal

Velhos afetos encontram-se na estreia de Terceiro Sinal

Fotografia preta e branca de Otávio Frias Filho, Marcos Renaux, Mauri Paroni

Otávio Frias Filho, Marcos Renaux, Mauri Paroni