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Amor, liberdade e teatro

Publicado em: 12/03/2020 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.25

 

“Devemos”, “temos que”, “o correto é”, são expressões da depauperização valorativa em curso na sociedade contemporânea que podem ser evitadas por qualquer artista intencionado a construir uma cultura de liberdade. Isso requer esforço intelectual, estudo e informação para dispor de instrumentos afinados de pensamento. Requer abertura mental para não cair na preguiça ideológica do slogan alternada à exaltação egótica. Requer tentar saber quem se é.

É quase impossível sabermos quem somos nesta vida contemporânea; mas, através da arte, podemos imagina-lo. O que fosse arte nem o pintor francês radicado nos Estados Unidos Marcel Duchamp (1887-1968) sabia. A cada instante sua obra declarou não o saber. Indagando-o, aproveitou a dualidade para reinventar a arte justamente através da dúvida conceitual sobre a arte: a arte ocorre na mente de quem a desfruta e não no seu objeto. O que, por um lado, reVolveu a discussão da arte no âmbito acadêmico e produtivo, melhorando-a; por outro, gerou especulação e mediocridade artesanal incentivadas pela mercantilização do conceito.

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Promoveu-se no ano passado uma falácia sobre o fechamento de uma exposição que supostamente promovia imagens de pedofilia sob a legitimação da arte. Instilou-se, numa polêmica discussão sobre a performance de um performer nu, a acusação de incentivo que dava a sua obra ao crime de pedofilia, qual “denúncia” de aquela ser ou não arte; de ser ou não crime: de corromper ou não a atividade estética. De se dever ou não proteger a infância contra a degeneração moral dos “bons costumes”. Enfim, travou-se uma luta do “bem” contra o “mal”, numa clássica escalada maniqueísta tecida pela mentalidade do atraso; uma sofisticação da censura.
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O cineasta surrealista espanhol Luis Buñuel (1900-1983) sugere que uma ditadura jamais acaba se sofisticada sob a aparência de uma democracia. A liberdade seria, pois, um fantasma. Uma quimera pela qual vale a pena lutar porque nisso estaria no seu valor em si: o sentido de nela acreditar. Consequentemente, acreditar na Cultura origina o desejo de liberdade.

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Este trecho do capítulo “Amor e Arte”, do Elogio do amor, de Alain Badiou e Nicola Truong, possibilita uma digressão bastante pertinente à prática da liberdade na arte, partindo de uma reflexão sobre o amor.

“O poeta português [Fernando] Pessoa [1888-1935] diz em algum lugar: “o amor é um pensar”. É uma afirmação aparentemente paradoxal porque sempre se sustentou que o amor é feito de corpos, desejo, afeições, ou seja, tudo o que não é propriamente razão ou pensamento. Mas ele diz “o amor é um pensar”. Creio tenha razão, penso que o amor seja um pensar e que a relação entre esse pensamento e o corpo seja muito particular e – como dizia Antoine Vitez [*] – inelutavelmente marcado por uma violência que todos experimentamos na vida. É verdade, o amor dobra os corpos, causa imensos sofrimentos; o amor não é um longo rio tranquilo, como encarregam- se de demonstrar nos todos os amores que levam ao suicídio o ao homicídio. No teatro, o amor não é somente nem sobretudo um vaudeville do sexo ou da galanteria inocente, é também tragédia, renúncia, furor. A relação entre o teatro e o amor é também a exploração do abismo que separa os sujeitos, e a descrição da fragilidade da ponte que o amor joga entre duas solidões. É necessário voltar sempre à mesma questão: o que é um pensamento que se desdobra fazendo o papel de ligação entre dois corpos sexuados? Mas – isso responde à sua pergunta – de que deveria falar o teatro se não houvesse o amor? Teria falado, e na realidade o fez extensamente, da política. Digamos, portanto, que teatro é política e amor e, mais em geral, a textura deles. De resto, é possível definir a tragédia sustentando que esta tece a política com o amor. Mas o amor pelo teatro é também necessariamente amor pelo amor, porque sem histórias de amor, sem a luta da liberdade amorosa contra contratações de família, o teatro se reduziria a pouca coisa. As comédias antigas como as de Moliére [1622-1673] contam essencialmente em que modo os jovens que se encontraram por acaso devam eludir a intriga do matrimonio combinado pelos pais. O conflito teatral mais comum, o mais empregado, é aquele que vê o acaso do amor se contrapor à necessidade legal. De modo mais sutil, é a batalha dos jovens, apoiados pelo proletariado (escravos e domésticos), contra os velhos, ladeados pela Igreja e pelo Estado [**]. A esta altura pode-se objetar-me que tipo de liberdade venceu, que não existem mais matrimônios combinados e que o casal é uma criação pura. Ma estamos certos de que isso seja mesmo verdade? A liberdade… qual liberdade, exatamente?
A que preço? Eis aqui a verdadeira pergunta*: que preço o amor pagou pelo aparente triunfo de sua liberdade?”
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Será sempre inócuo brandir dogmas de mal compreendidas ideias neoliberais, comunistas, socialistas, pretas, brancas, amarelas, deficientes, coxinhas, mortadelas, num culto aproximativo a slogans marqueteiros. Nessa imprecisão da linguagem, ela mesma conceitual, torna-se impossível um desenho útil da civilização contemporânea. Tal imbecilidade corrobora a autocensura via temor do linchamento pela anônima massa cibernética; faz inveja a qualquer censor bestificado pelo próprio poder – isso está longe ser um autocontrole.

Chegamos a uma sociedade onde um individuo teme ficar a sós com outro individuo num elevador desprovido de câmera espiã. Grassa o medo por vivermos numa prisão de preconceitos. O medo pela banalização da agressividade criminal. Destruímos o próprio direito de não sermos assediados por tal ameaça. Aqui, o papel da cultura é – pode ser – fundamental para o aperfeiçoamento institucional e jurídico de nossa sociedade em desagregação civilizatória se superarmos a ilusão coletiva criada pelo medo.

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A esse respeito, os trechos finais do mesmo capítulo “Amor e Arte” são muito eloquentes, guardadas as particularidades do contexto. O tema chegaria a ser abordado de forma romântica, não fosse a sua opção coletivista de opor-se ao individualismo. Deixo a palavra aos seua autores.

“Voltando ao teatro, impressiona a extrema precariedade de uma turnê teatral. Penso naqueles momentos particularíssimos, lacerantes, nos quais tal comunidade se desfaz: terminou a turnê, viveu-se juntos por um mês ou mais e nos separamos, de repente. Trocaram-se números de telefone, prometeram-se chamadas, mas isso não vai ocorrer; acabou, todos se separaram. Ora, no amor a questão da separação é importante a ponto de quase podermos definir o amor como uma batalha ganha contra a separação.
(…)
“Truong: E o que é o amor ao teatro visto de dentro, quero dizer, do ponto de vista do ator que o senhor foi e que talvez queira voltar a ser? (…)

Badiou: É o singular amor de entregar o próprio corpo como presa da língua, como presa da idéia. Veja, qualquer que for a aversão à atuação e à ficção, todo filósofo é um ator porque desde a época dos grandes pensadores gregos os filósofos falam em público. Consequentemente, a filosofia comporta sempre um elemento da exposição de si, e isso faz com que a dimensão oral da filosofia […] consista numa tomada de parte do corpo, numa operação de transferência. Condenou-se frequentemente os filósofos por tratar-se de ilusionistas que fascinam as pessoas com meios artificiais e que, operando sedução, conduzem-nas a verdades improváveis. No livro V da República de Platão (obra imensa da qual estou preparando uma ‘tradução’ integral bastante singular) há uma passagem extraordinária. Sócrates começa a definir o que é um verdadeiro filósofo quando, bruscamente, parece mudar de argumento. Aqui está a minha versão daquela passagem (fala Sócrates):

‘[…] Quando falamos de um objeto de amor, suponhamos que o amante ame este objeto em sua totalidade. Não admitimos que o seu amor escolha uma parte e rechace a outra.’
Os dois jovens parecem impressionados. Adimanto se encarrega de exprimir a desorientação deles”
‘Caro Sócrates! Que relação tem esse desvio sobre o amor e a definição de filosofo?’
‘Ah, certo, os nossos jovens apaixonados! Incapazes de reconhecer que, como disse o grande poeta português Fernando Pessoa, ‘O amor é um pensar’. Digo a vocês, meus jovens queridos: quem não começa do amor jamais saberá o que é a filosofia’ “

(…) Comecemos pelo amor. Nós, filósofos, não temos tantos meios assim; se nos tiram aquele da sedução, estaremos desarmados de verdade. Portanto, ser ator é isso também, é seduzir em nome de alguma coisa que, afinal de contas, é uma verdade.” [***]

[*] Antoine Vitez (1930-1990) – Ator, autor, diretor e pedagogo do teatro francês protagonista da cena teatral francesa do pôs guerra. Militante comunista, abandonou a atividade após a invasão das tropas soviéticas ao Afeganistão em 1979.

{**] Sempre colocado o contexto histórico da França pré-revolucionária do tempo de Moliére (Luis XIV); o casamento era um mero arranjo entre pequenas empresas artesanais familiares e patriarcais, mero meio de negociar como hoje seria um contrato com uma fornecedora de telefonia a uma empresa. Havia dotes para as mulheres (que praticavam exclusivamente a mão de obra doméstica, na grande maioria dos casos) ndt – MP

[***] Tradução MP

Cenas e cartaz de “O Fantasma da Liberdade”, de Luis Buñuel
http://dooutroladodatela.com.br/comedia/o-fantasma-da-liberdade/