
Celebrar duas décadas de trajetória é mais do que um marco para a Trupe Lona Preta. É reafirmar uma escolha estética e política que coloca o riso, o jogo e a linguagem popular como ferramentas de resistência. O grupo, sediado no Jardim Guaraú, periferia da Zona Oeste de São Paulo, estreia “O Circo da Lona Torta” no Sesc Pompeia em uma temporada gratuita que homenageia a própria história e renova o compromisso com o público. Dirigido e escrito por Joel Carozzi e Sergio Carozzi, o espetáculo apresenta um grande coro circense e musical que mistura palhaçaria, teatro de mamulengo, acrobacias e música ao vivo, propondo uma reflexão divertida sobre o poder, a arte e a liberdade. Nesta conversa, os diretores e dramaturgos Joel Carozzi e Sergio Carozzi falam sobre o processo criativo, as escolhas artísticas e o significado de celebrar 20 anos de uma trupe que faz do riso um ato político.
Bob Sousa – “O Circo da Lona Torta” celebra os 20 anos da Trupe Lona Preta. Como foi pensar um espetáculo que marca essa trajetória e, ao mesmo tempo, aponta para o futuro do grupo?
Joel Carozzi e Sergio Carozzi – O espetáculo surge do desejo de aproximar coletivos e artistas que, há muitos anos, de alguma forma, fazem parte da trajetória da Trupe Lona Preta. A proposta parte do cabaré circense, mas busca transcender essa forma tradicional, integrando diferentes linguagens por meio de uma dramaturgia orientada pelos campos de pesquisa da trupe: a palhaçada popular, a música em cena e a crítica social.
Bob Sousa – A figura do CEO que tenta impedir o espetáculo parece um comentário sobre o controle e as tentativas de silenciamento da arte. Como surgiu essa ideia e o que ela representa para você dentro da dramaturgia?
Joel Carozzi e Sergio Carozzi – Há muitos anos o teatro de mamulengo nos impactou profundamente na Trupe Lona Preta. Quando assistimos a uma apresentação do Mamulengo da Folia pela primeira vez, ficamos encantados com a forma como as figuras sociais são representadas pelos bonecos. Ao mesmo tempo, essas figuras são complexas e contraditórias, extremamente diretas e com uma incrível capacidade de dialogar com diversos tipos de público, de crianças a adultos, das mais variadas origens.
Por isso, quando tivemos a oportunidade de convidar o mestre bonequeiro Danilo Cavalcante para integrar nosso projeto, escolhemos um destes bonecos para ser a figura geradora da contradição do espetáculo. A figura escolhida, aliás, já foi amplamente explorada na literatura e na cultura popular brasileira. Para nós, essa figura representa no espetáculo não apenas o silenciamento em relação à arte, mas também o poder econômico da acumulação, no contexto de desigualdade social do nosso país.
Bob Sousa – A montagem mistura palhaçaria, teatro de mamulengo, música e acrobacias. De que forma essas linguagens se articulam para construir a narrativa e a energia coletiva do espetáculo?
Joel Carozzi e Sergio Carozzi – Essas linguagens se articulam de modo a favorecer a contradição central do espetáculo. Cada um dos 17 artistas compõe o coro cênico, e suas habilidades,suas virtuoses são os meios pelos quais este coro se expressa. As habilidades não são apresentadas como atributos individuais, mas como formas de resistir ao impedimento de ocupar aquele espaço. Assim, ora a música, ora o malabarismo, ora a acrobacia expressam uma mesma fala, que é também entoada pela participação do público: “A gente fica!”.
Bob Sousa – A Trupe Lona Preta tem uma relação profunda com o público das periferias. Como essa experiência moldou o modo de fazer teatro e a maneira como o grupo enxerga o papel social do artista?
Joel Carozzi e Sergio Carozzi – A Trupe Lona Preta existe há 20 anos no Jardim Guaraú, região periférica da cidade de São Paulo, e essa condição marca profundamente o fazer estético do grupo, pois considera o diálogo com os nossos iguais um pressuposto básico para qualquer criação.
Entendemos que, para o teatro acontecer de fato, é preciso que tanto artistas quanto público estejam engajados na ação. Por isso, é fundamental considerar as condições objetivas e subjetivas do público. Sabemos que, historicamente, nossa classe teve o acesso à fruição dos bens culturais negado, o que nos coloca diante de um desafio de duas faces: por um lado, precisamos nos apropriar de toda a herança cultural que nos foi negada; por outro, devemos também afirmar as criações genuínas que surgem dessa condição de precariedade.
Bob Sousa – O riso sempre foi uma marca da trupe, mas também um veículo de reflexão. Como equilibrar o humor e a crítica sem perder a leveza que caracteriza o trabalho de vocês?
Joel Carozzi e Sergio Carozzi – No que diz respeito ao equilíbrio entre o humor e a crítica, característica do trabalho da Trupe Lona Preta, podemos apenas afirmar que essa combinação é bastante potente, pois o riso convoca a razão e opera na contradição, daí o seu potencial crítico. No entanto, essa equação não é uma fórmula pronta; ao contrário, é um rico campo de pesquisa em que a síntese entre esses dois termos é objeto permanente de pesquisa.
Bob Sousa – Após 20 anos de estrada, o que você considera essencial preservar na identidade da Trupe Lona Preta e o que precisa se reinventar para os próximos ciclos?
Joel Carozzi e Sergio Carozzi – É essencial preservar a busca genuína pelas respostas estéticas aos desafios do nosso tempo. E as formas que essa busca pode se materializar são múltiplas: novas dramaturgias, novos conflitos, novas piadas… por isso são elas mesmas (as formas de responder às questões estéticas do nosso tempo) que devem ser reinventadas permanentemente.