por Ivam Cabral, diretor-executivo da SP Escola de Teatro
Ontem (6/9), o Paço Imperial, no coração do Rio de Janeiro, abriu suas portas para uma das mostras mais aguardadas do ano: “Maria Bonomi, a arte de amar, a arte de resistir”. Em cartaz até 16 de novembro, a exposição ocupa todo o primeiro andar do histórico edifício e reúne mais de 250 obras da artista ítalo-brasileira, em um percurso que atravessa quase 80 anos de produção. A visitação é gratuita e pode ser feita de terça a domingo, das 12h às 18h.
A retrospectiva, que celebra a potência criativa de Maria Bonomi, tem curadoria de Paulo Herkenhoff e Maria Helena Peres. Juntos, os dois estruturaram uma narrativa que não se limita a uma linha cronológica. Dividida em onze salas, a mostra convida o público a percorrer múltiplos caminhos da trajetória da artista, desde as primeiras experiências até os trabalhos mais recentes, marcados por densidade política e afetiva.
As obras revelam a versatilidade de Maria em diferentes linguagens: xilogravura, desenho, escultura, pintura, instalações, além de sua atuação na arte pública, cenários e figurinos. Os temas são igualmente diversos, mas sempre atravessados pela urgência de seu tempo: a brasilidade e a cultura indígena, a política e a resistência diante da ditadura militar, a homoafetividade, o amor, as injustiças sociais, a pandemia da Covid-19 e as inquietações existenciais que marcam sua obra.
Entre os destaques estão séries como Favela, Babel e Pedra Robat, apresentadas na Bienal de Veneza de 2024. Obras emblemáticas também compõem o percurso, como Tropicália (1995), xilogravura fractal criada a partir de 319 matrizes, que ecoa um discurso ecológico; Balada do Terror (1970), denúncia pungente contra a tortura durante a ditadura; Epopeia Paulista (2004), painel monumental instalado na Estação da Luz, em São Paulo; e Etnias – Do Primeiro e Sempre Brasil, concebido para o Memorial da América Latina a convite de Oscar Niemeyer. Uma das peças mais emocionantes é Lena, escultura de 180 quilos em homenagem à companheira da artista, Lena Peres, produzida especialmente para esta mostra.
Há ainda uma curiosidade que acrescenta um tom literário à experiência da mostra. Em 2 de outubro de 1971, Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil a “Carta sobre Maria Bonomi”, um texto raro em que a escritora se lança ao encontro da obra da artista. Ali, Clarice descreve as gravuras como “tocáveis” e, ao mesmo tempo, envoltas em um “véu inefável”, ressaltando o paradoxo entre a materialidade da madeira e o mistério que dela emana. Ao falar de uma matriz recebida de presente, a da gravura Águia, ela evidencia a potência tátil e simbólica do processo criativo de Bonomi, comparando suas xilogravuras ao próprio ato de escrever. A carta, mais que crítica, é uma declaração de cumplicidade estética: duas criadoras que se reconhecem no risco, na forma e no abismo fecundo do gesto artístico.
Maria Bonomi, nascida em 1935, construiu uma carreira que se confunde com a própria história da arte contemporânea brasileira. Aluna de mestres como Lívio Abramo e Johnny Friedlaender, também estudou no Pratt Institute, em Nova Iorque, e participou do Estúdio Gravura em São Paulo nos anos 1960. Sua obra vai das gravuras intimistas a grandes painéis monumentais em espaços públicos, sempre marcada pelo gesto vigoroso e pela dimensão coletiva da arte.
“Maria Bonomi, a arte de amar, a arte de resistir” é mais que uma exposição. É um mergulho em uma vida dedicada à criação e à transformação social pela arte. Ao reunir quase oito décadas de produção, o Paço Imperial se torna palco de um encontro inesquecível com uma das maiores artistas do país. Uma oportunidade rara de atravessar sua trajetória, ora poética, ora política, mas sempre profundamente humana.
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