
Miriam Rinaldi, por Bob Sousa
Atriz, pesquisadora e professora com trajetória marcada pelo rigor e pela escuta do corpo, Miriam Rinaldi conduz o laboratório Viewpoints no programa SISTEMAS EM PERSPECTIVA, retomada da vertente formativa da Companhia da Memória. Com mais de 15 anos de pesquisa prática e teórica sobre o sistema de improvisação criado por Mary Overlie e desenvolvido por Anne Bogart, Rinaldi propõe um trabalho atento aos fundamentos espaciais e temporais da presença cênica, voltado à criação coletiva e ao engajamento com o aqui e agora da cena. O curso será realizado na Casa de Liège, em Pinheiros, de 14 de agosto a 3 de outubro, às quintas e sextas, das 10h às 12h, com carga horária total de 32 horas. Nesta conversa, a artista compartilha os atravessamentos entre prática e teoria, sua experiência com as diferentes linhagens dos Viewpoints e os caminhos de escuta que atravessam sua pedagogia.
Bob Sousa – A noção de tempo em Viewpoints desafia os modos tradicionais de construção de cena. Como você conduz os participantes a perceberem e agirem sobre o tempo como um material dramatúrgico e não apenas como duração?
Antes de mais nada é importante ter em mente que os Viewpoints pertencem a um sistema de improvisação. O sistema está estruturado em eixos que promovem algumas habilidades no ator/atriz, dentre eles: a escuta extraordinária, o diálogo com o grupo e uma coisa super importante que é a composição em cena. Digo isso, porque os Viewpoints não constituem uma linguagem para a cena. É como correr. Você treina para adquirir maior capacidade aeróbia (para a cena), mas não vai fazer um espetáculo sobre corrida (salvo exceções). Então, pelo que estou entendendo da sua provocação, qual o desafio dos Viewpoints?
Em uma abordagem mais convencional, por exemplo, se exploraria o Tempo da ficção: quando se passa aquela circunstância a ser adentrada pelo ator. Ou se investigaria o tempo-ritmo da cena em específico. Em ambos os casos, é a ficção e o projeto artístico sobre ele que estabelecem esse entendimento. Já em uma criação pós-dramática, de um texto criado em processo colaborativo, por exemplo, onde não há uma ficção pré-estabelecida, os Viewpoints também podem impulsionar a ação, da mesma maneira que o caso anterior. Como? Enriquecendo a abordagem sobre o material cênico de maneira física, concreta, ampliando a maneira de lidar ou compreender as camadas dessa ideia de Tempo. E acrescento que isso serve para qualquer dramaturgia, pois Tempo e Espaço – base dos Viewpoints – são noções universais; temos essa experiência na maneira de estarmos no mundo.
Dito isso, outra coisa importante é saber que o eixo Tempo/Espaço, nos Viewpoints, é dividido em outras categorias. No caso, Tempo é dividido em: Duração, Velocidade, Repetição e Resposta K[1]. Então, o que pode acontecer, é que o ator ganha mais repertório, uma maior percepção, para olhar para os aspectos de duração de um gesto, a velocidade de uma fala, repetição de um deslocamento ou ainda uma reação a algo inesperado, por exemplo. Ele ganha mais sutilezas: como as variações de velocidade pode afetar o que se diz, o que se faz, os deslocamentos em cena tec. Como é possível responder aos estímulos de fora tendo o Tempo como elemento de jogo? como reagir a um gesto do parceiro de cena, aos sons da rua, a uma porta que bate ou um objeto que cai? É um exercício do sensível. São parceiros que ajudam o ator a criar, a expandir possibilidades concretas.
O livro da Anne Bogart e da Tina Landau[2] traz uma série de exercícios. Ele é mesmo um guia prático. Mas soma-se a isso a minha experiência pessoal tanto nos cursos com a SITI Company e Anne Bogart, como com Mary Overlie, durante os anos em que vivi em Nova Iorque. Tive essa chance maravilhosa! Mas penso, sobretudo, que o principal é pensar o ator hoje. Pensar na nossa realidade como artista brasileiro e como os Viewpoints se encaixam, como ele engendra a cena contemporânea.
Bob Sousa – Considerando as diferenças entre o sistema de Mary Overlie e as reformulações de Anne Bogart, quais são os pontos de fricção mais produtivos entre essas abordagens que você propõe no laboratório?
Bacana essa pergunta porque elas tem, de fato, abordagens muito distintas. Bogart, como diretora que é, está mais interessada no conjunto, no coletivo. Já Mary Overlie propõe uma busca mais individual, um mergulho em si mesmo. As categorias dos Viewpoints de ambas também são diferentes: para Overlie somam seis e para Bogart, nove. No laboratório, vou propor algumas pincelados da minha vivência, porque o mais importante – ao meu ver – é que o participante tenha a experiência viva do poder desse sistema e de como ele funciona.
Ao final da minha tese[3], eu constato que apesar da aparente diferença entre Bogart e Overlie, os Viewpoints de ambas são bastante complementares e isso é fascinante. Em uma comparação grosseira, seria uma relação como a de Stanislavsky e Grotowski na pesquisa das ações físicas. Overlie e Bogart são da mesma geração, não tem a diferença de contextos históricos como o exemplo anterior, mas percebo que elas acabaram por trilhar caminhos paralelos, porém, em uma mesma direção.
Bob Sousa – Então, como você comentou, para Anne Bogart o trabalho coletivo é base essencial em Viewpoints, especialmente no que se refere à escuta e à ação conjunta. Como você trabalha tecnicamente a percepção do grupo e o desenvolvimento de uma escuta espacial e temporal afinada?
Há vários exercícios nesse sentido, mas é importante se ater ao seguinte: o desenvolvimento dessa escuta e dessa ação conjunta carece de treinamento. É preciso ter consciência disso. O sistema de Viewpoints não é algo que se aplica, mas que se desenvolve – e para tanto é preciso que o praticante tenha em mente onde quer chegar. É preciso ter um farol. Isso é base essencial de quem treina, em qualquer modalidade, certo? E as vezes os resultados, se podemos dizer assim, não são imediatos. É necessário perceber a si próprio no processo. Pode ser que muitos reconheçam certa semelhança disso que estou dizendo com aquilo que Barba e Grotowski falam sobre Treinamento, e isso está absolutamente correto. Anne Bogart desenvolveu vários dos princípios desses mestres. Para se ter uma ideia, antes da SITI Company, ela fundou um grupo chamado Via Theater, uma referência clara ao termo Arte como veículo. Outro exemplo é o SATs, um termo desenvolvido pela Antropologia Teatral de Barba, e que se refere ao estado pré-expressivo do ator, aquilo que antecede a ação. Bogart dialoga muito intensamente com esses princípios desenvolvendo e atualizando, também.
Outro ponto importante que gostaria de diferenciar: técnica e sistema. A técnica é algo relacionado a uma tradição ou a um código específico de linguagem: um passo do balé, um golpe de kung-fu ou uma máscara da Commedia dell’ Arte. Esses códigos podem ser atualizados, mas manterão sua raiz. Não há códigos em Viewpoints, mas princípios, fundamentos, acordos coletivos; ou seja, um conjunto de ideias que regem a improvisação, o vocabulário e o diálogo coletivo. E pertencer a um coletivo, atualmente, mesmo que temporário, é muito precioso.
[1] Pode haver divergências quanto á tradução desses termos. Na tradução para o português, por exemplo, os Viewpoints de Tempo são: Andamento, Duração Resposta Cinestésica e Repetição.
[2] BOGART, A. LANDAU, T. O livro dos Viewpoints: um guia prático para Viewpoints e Composição. São Paulo, Editora Perspectiva, 2017.
[3] RINALDI, Miriam. Viewpoints: Teoria e Prática. Orientador: Prof. Jacó Guinsburg. Tese. Escola de Comunicações e Artes da USP, São Paulo, 2016.