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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Kleber Montanheiro

Publicado em: 04/07/2025 |

Kleber Montanheiro, por Bob Sousa

Celebrando 25 anos de trajetória, a Cia. da Revista estreia João, musical original escrito por Marcelo Marcus Fonseca que encerra a trilogia “Conexão São Paulo-Pernambuco” com uma fábula contemporânea e surrealista. Dirigido por Kleber Montanheiro, o espetáculo estabelece um diálogo poético entre o escritor João Cabral de Melo Neto e seu personagem João, cruzando questões de identidade, diversidade e deslocamento no Brasil urbano. Com músicas inéditas de Vitor Rocha e Marco França, João reafirma a vocação da companhia para o teatro musical autoral e politicamente engajado. Conversamos com o diretor para entender mais sobre esse encerramento de ciclo e os desafios de dar corpo e cena a uma dramaturgia que transita entre a biografia, a ficção e o onírico.

Bob Sousa – João encerra uma trilogia que conecta São Paulo e Pernambuco a partir de perspectivas distintas da cultura, da literatura e da diversidade. Como foi pensar a encenação desse terceiro espetáculo como fechamento de ciclo, tanto temático quanto estético?

Kleber Montanheiro – A minha ideia de encenação partiu da chegada numa metrópole. A multiplicidade de imagens aliada a 360 graus de construções, criando a sensação de não pertencimento. Ao mesmo tempo, eu queria que o público se identificasse, que pudesse se observar dentro dessa estrutura. Por isso a ocupação em arena total, com quatro plateias. A isso se somou a ideia de um espaço em tons de cinza, que traduzisse o céu nublado e as edificações brutalistas em concreto aparente, em contraste com o prólogo quente de tons terrosos: o ponto de partida da saída das personagens de Pernambuco rumo ao sudeste. Dentro dessa perspectiva visual, minha ideia como alinhamento final era a sensação do tempo que corre, que passa rápido, levando as personagens ao seu destino, ora como uma metáfora de deslocamento, ora como movimento dramático da cena. Por isso optei por um palco giratório central, que conecta todos os cenários do entorno. Essa dureza procura espelhar também a poesia de João Cabral de Melo Neto, uma vez que, num primeiro encontro, existe uma dificuldade de entendimento imediato. A beleza dos versos de João Cabral estão no reconhecimento profundo, é preciso cavar as palavras para encontrar seu sentido poético. Como concepção inicial para a direção e a encenação, ela segue a ideia do guarda chuva temático que compreende toda a trilogia: migração, liberdade, diversidade e opressão violenta.

Bob Sousa – O encontro entre João, personagem migrante, e João Cabral, seu criador, evoca dimensões metafísicas e políticas. De que maneira essa fábula foi traduzida visualmente no espaço cênico, no figurino e na movimentação dos corpos em cena?

Kleber Montanheiro – O texto original de Marcelo Marcus Fonseca traz para a cena a provocação de duas camadas dramáticas: uma extremamente poética que é centralizada na figura do João, o escritor e a outra no João, migrante. A partir dessas duas realidades procurei costurar a dimensão real, social e política que é a vida de um recém-chegado na metrópole através de uma proposta de leve metalinguagem. A composição fábular, por vezes surrealista, traz o comentário de um Brasil que reflete o nosso tempo pelos olhos do passado. A luz de Gabriele Souza se apoia no conteúdo poético, tecendo pinturas pela cenografia; o figurino todo concebido em jeans traz a marca do trabalhador e a popularidade que atravessou o século XX, tornando-se inclusive símbolo de contracultura. A interpretação dos atores sai de uma construção realista para a expansão: a velocidade do dia a dia exposta em corpos dilatados e desenhados em cena. Optei pela hiper teatralidade e a sugestão, permitindo que a plateia pudesse completar imagens como co-autora, como faz na literatura, base motriz para a construção do espetáculo. Para finalizar essa proposta, o João poeta percorre todo o espetáculo como uma sutura contínua: observando, interferindo, sugerindo textos e interferindo na ação.

Bob Sousa – A música tem papel central na dramaturgia do espetáculo e dialoga com a tradição crítica de artistas como Gonzaguinha. Como se deu a construção dessa paisagem sonora e que escuta você buscou despertar no espectador com ela?

Kleber Montanheiro – A música promoveu o encontro da poesia de João Cabral de Melo Neto com a poesia de Gonzaguinha. Ambas são amparadas pela crítica social e política. Essas inspirações deram corpo à dramaturgia, letras e músicas originais. O encontro dos criativos se deu em função de uma busca pela dramaturgia em vários níveis: cada criação precisava contar uma história, acrescentando informações ou comentando a ação durante todo o espetáculo. Foi assim com a iluminação, a cenografia, o figurino, o visagismo e também com a música. Por se tratar de um musical, a música já se orientava na função de avançar a cena ou trazer novas informações a cada canção.
Mas no caso de João, potencializamos essa ideia na fricção entre as bases poéticas de trabalho – os materiais de ponto de partida: João Cabral e Gonzaguinha se unem para dar voz a Vitor Rocha e Marcelo Marcus Fonseca, ecos de novos Brasis.
Ao mesmo tempo, os arranjos de Marco França trouxeram ainda uma última camada, bases eletrônicas em diálogo com os quatro músicos ao vivo. Essa realidade procurou despertar uma identificação mais imediata da plateia através de sonoridades como sons do metrô, chuva, sinos e aves do sertão pernambucano. A paisagem sonora se desloca, como a trajetória percorrida pelas personagens, do nordeste ao sudeste.

Leia a crítica de “João”, por Bob Sousa