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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Eloisa Vitz

Publicado em: 02/07/2025 |

Eloisa Vitz, por Bob Sousa

 

Celebrando 25 anos de trajetória no teatro, o Grupo Gattu reestreia “Glória”, uma comédia política e filosófica que coloca em cena duas mulheres em uma disputa pelo poder em uma ilha fictícia. Com texto e direção de Eloísa Vitz, fundadora do grupo e uma das figuras mais atuantes da cena teatral paulistana, o espetáculo marca a conclusão da tetralogia iniciada com “Amor”, “Fortuna” e “Graça”. Vencedor de diversos prêmios importantes, como o Prêmio Arcanjo de Cultura (2022 e 2024) e com passagens pelo Edinburgh Fringe Festival, o Grupo Gattu reafirma seu compromisso com o teatro acessível e de qualidade. Conversamos com Eloísa Vitz sobre o novo momento da companhia, as reflexões propostas em “Glória” e os desafios estéticos e políticos que permeiam essa montagem.

Bob Sousa – “Glória” encerra uma tetralogia filosófica que percorreu temas como amor, fortuna e graça. Como foi o processo de amadurecimento dessa pesquisa ao longo dos anos e de que forma o tema da glória dialoga com as questões políticas contemporâneas?

Eloisa Vitz – Bob querido já agradeço as perguntas e o parabenizo por ser este empreendedor artístico, incansável e talentoso. Uma alegria bater esse papo contigo.
Glória encerra a tetralogia sim, quando comecei a tetralogia com o Amor não imaginava que seria uma tetralogia, esta foi se formando por si. No Grupo Gattu, companhia que dirijo há 25 anos, temos um apreço pelo inédito e de percorrer caminhos antagônicos nas pesquisas, digo isso porque o Amor surge depois de uma temporada explorando várias peças do Nelson Rodrigues. Sentamo-nos em roda e a pergunta surge: o que vocês gostariam de montar? Queriam montar uma peça onde todos fossem felizes e se apaixonassem no final. Fiquei encantada com a doçura do meu elenco e entendi que queríamos explorar outras facetas, menos dolorosas dos que as rodrigueanas. Pensei no Amor como uma força primordial que norteia tudo. O Amor, esse caleidoscópio infindo, um tema inesgotável. Contudo, nos pareceu a força mais mágica e poderosa do universo. Por vezes, o ser humano presencia o Amor, e, misteriosamente, não enxerga a Graça. E foi esse o tema da segunda peça da tetralogia. A Graça surge múltipla para nós comediantes. Ter a Graça se transformava em muitos veios de um rio generoso do cotidiano. A Graça está no dia a dia, em estar vivo, em respirar e nas coisas pequenas, a Graça talvez esteja na delicadeza? E ter Graça para um comediante é uma graça. A Fortuna chega na terceira montagem para investigar o papel do Destino, a Sorte e as nossas escolhas. Qual caminho seguir, quando a vida nos oferece encruzilhadas? O Destino já está pronto ou somos nós que o criamos? Você se sente uma pessoa afortunada? Veja querido Bob, na minha dramaturgia os temas filosóficos surgem, porque gosto de tratar temas universais e perguntas primordiais me perseguem: Quem somos? Para que nascemos? Por que morremos? Qual o sentido da vida?
A Glória surge da pergunta: o que falte (talvez) para alguém que já tenha Amor, Graça e Fortuna? Glória. Glória conclui nossa tetralogia, que espero suscite mais perguntas do que respostas. Tenho também por característica pessoal tratar de assuntos filosóficos com leveza e humor. Porque gosto de ser popular, compreendida e acessível. Sei como é complexo chegar nessa aparente simplicidade. Desejo formar uma plateia que goste de teatro. E respeito muitíssimo a inteligência do meu público. Sou uma dramaturga feliz quando surpreendo meu público, quando o faço rir e refletir. Cada tema de uma peça foi inserido em um contexto, onde eu pudesse estabelecer os nortes dramatúrgicos de tempo, espaço, circunstâncias e personagens.  Miguel Arcanjo Prado, crítico teatral prestigiado, usou um termo que me encantou e que estabelece o cerne da peça “Glória”.  Arcanjo diz sobre a Glória: …. “texto sobre a incessante gula pelo poder que esmaga a verdade do sonho artístico.” A ação acontece em uma ilha onde duas mulheres concorrem ao título de Governadora. A pergunta que ressoa: O que você seria capaz de fazer para atingir a Glória?

 

Bob Sousa – A visualidade de “Glória” é marcada por elementos que misturam humor, lirismo e realismo fantástico. Como foi construída a estética cênica do espetáculo e de que forma ela contribui para ampliar as camadas de sentido dessa disputa pelo poder?

Eloisa Vitz – Sim, Bob é isso mesmo. Misturamos humor, lirismo e realismo fantástico, porque adoro criar cenas como quem pinta uma tela. Gosto do impacto visual, amo as cores, a minha direção gosta do belo, do harmônico e do arrebatador. Porque as imagens, como você sabe tão bem, são muitas vezes muito mais impactantes que as palavras que escrevo. Então, a combinação diretora e dramaturga comunga na narrativa. Crio imagens onde a palavra não alcança. Acredito que o realismo fantástico é um elemento sul-americano, que agrego com alegria nas minhas peças. O realismo puro não fala sempre a minha alma. Por vezes, preciso de alguma estranheza, de alguma insolitude. Gosto de percorrer a cena com determinada incerteza. A luz do espetáculo, que também assino, cria esses ambientes sedutores de poder e a ausência dele, com escassez.
No cenário de Heron Medeiros, as cortinas criam esse caminho etéreo e pouco nítido, parafraseando os caminhos do poder, revelando e escondendo ao mesmo tempo. Os estratagemas (cortinas)  de quem manipula suas armas secretas para atingir o reconhecimento absoluto: a Glória.

 

Bob Sousa – O Grupo Gattu é reconhecido por seu trabalho contínuo de formação de plateia e pela oferta de espetáculos gratuitos. Como você enxerga a importância de manter o acesso democratizado à arte, especialmente em tempos de tantos desafios sociais e culturais?

Eloisa Vitz – Bob, manter o acesso democratizado à arte, sobretudo em tempos de feridas sociais expostas e estruturas culturais fragilizadas, é um gesto radical de resistência. No Grupo Gattu, aprendemos a reconhecer que o teatro não pertence a quem o faz, mas ao público — e é por isso que seguimos oferecendo espetáculos gratuitos há mais de duas décadas. Democratização total. Qualquer pessoa de qualquer situação econômica e social pode assistir a um espetáculo do Grupo Gattu. As leis de incentivo e fomento são as que nos permitem praticar gratuidade dos ingressos. Graças a esses mecanismos, conseguimos manter o teatro como um bem comum — acessível, plural, vivo — onde cada pessoa, independentemente de sua renda, possa ocupar seu lugar na plateia.
Formar plateia não é apenas formar público: é formar sensibilidade. É olhar para a criança que nunca entrou num teatro e ver ali o autor do próprio destino. É dialogar com a senhora da periferia que, após um espetáculo, nos diz que chorou como se tivesse revisto a própria vida.
A arte é um direito, não um privilégio.
Democratizar o acesso é, portanto, mais do que abrir portas. É abrir escutas. É reconfigurar o mundo a partir de novas narrativas. É dar nome à dor e ao sonho.