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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Lívia Camargo

Publicado em: 28/06/2025 |

Lívia Camargo, por Bob Sousa

Atriz, dramaturga e uma das idealizadoras do projeto, ao lado de Paula Aviles, Lívia Camargo assina a adaptação contemporânea de Uma Casa de Boneca, clássico de Henrik Ibsen, que estreia no espaço cultural Casaurora, em São Paulo. Sob sua codireção ao lado de Georgette Fadel, a peça propõe uma leitura feminista e antirracista, que amplia a crítica social do texto original ao entrelaçar gênero, raça e classe, reposicionando os corpos e as vozes que ocupam a cena. Em formato imersivo e encenado em uma casa real, o espetáculo aproxima o público da intimidade dos personagens e potencializa o impacto das tensões sociais que atravessam a narrativa. Nesta entrevista, Lívia Camargo fala sobre o processo de adaptação, as camadas políticas da montagem e a importância de ampliar os gestos de ruptura propostos por Nora Helmer.

 

Bob Sousa – O que te motivou a revisitar Uma Casa de Boneca a partir de uma perspectiva feminista e antirracista? Como foi o desafio de adaptar um clássico europeu para dialogar com as urgências sociais brasileiras?

Lívia Camargo – Idealizei esse projeto junto com minha grande amiga e parceira de vida, a atriz Paula Aviles, uma mulher racializada. Foi a partir desse encontro que emergiram todas as questões centrais da adaptação. O feminismo que atravessa uma mulher branca e burguesa como Nora não é o mesmo que atravessa uma mulher preta ou periférica. Entender essa diferença foi o ponto de partida — e o maior desafio. A peça original já é poderosa, mas ainda assim fala de um recorte muito específico da mulher europeia do século XIX. A nossa Nora, os nossos Nills Krogstad e Cristina Linde ganham outras camadas quando lemos essas relações pelo viés das opressões de gênero, raça e classe no Brasil de hoje. Mas é importante dizer que nossa adaptação não localiza a trama no Brasil, nem a atualiza para os dias de hoje. É uma história que pode acontecer em qualquer tempo e em qualquer lugar. O que fazemos é olhar para ela com o que temos de mais urgente: nossas referências, nossas feridas, nosso debate sobre gênero, raça e classe no Brasil contemporâneo. Não foi preciso quebrar o texto para reconstruí-lo com outras lentes, mas sim adicionar à obra camadas mais cruas — e, sobretudo, mais nossas.

 

Bob Sousa – O formato imersivo, com o público circulando pelos cômodos de uma casa real, cria uma experiência muito próxima e intensa. Como essa escolha espacial influenciou a construção dramatúrgica e as dinâmicas de atuação?

Lívia Camargo -Essa escolha exigiu um estudo profundo e múltiplo. A casa virou uma personagem viva. Era impossível tratá-la como mero cenário. Então criamos uma forma de atuação que batizamos de realismo-seletivo-intimista — um lugar que não é nem o hiperrealismo da câmera, nem a teatralidade tradicional. É um jogo entre o que se mostra e o que se esconde, entre o cotidiano e o simbólico. Também desenvolvemos uma pesquisa forte de vídeo em cena: o público pode assistir a trechos da peça em tempo real por câmeras espalhadas pela casa, o que cria camadas de voyeurismo e vigilância. Além disso, investimos em microfonação ambiente, porque o público também assiste do quintal — são três plateias distintas, que circulam, trocam de lugar e  vivenciam a peça sob três perspectivas diferentes. É uma espécie de cine-teatro ao vivo e em movimento. Um organismo que respira junto com o público.

 

Bob Sousa – Na sua visão, qual é a potência do gesto de Nora Helmer hoje? Como esse ato simbólico de “bater a porta” pode ser ressignificado quando incorporamos as vivências de mulheres racializadas e periféricas?

Lívia Camargo -O gesto de Nora ainda é potente, mas precisa ser relido. Nem toda mulher pode simplesmente bater a porta e ir embora. E quando pode, nem sempre há para onde ir. Para as mulheres negras, periféricas, trans, indígenas, essa porta muitas vezes está trancada — por fora e por dentro. A nossa Nora não bate a porta apenas como um gesto de liberdade individual. Ela carrega um grito coletivo. Ela se levanta não só contra o patriarcado, mas contra todas as estruturas que nos mantêm em silêncio, confinadas, domesticadas. Na nossa leitura, o bater da porta não é fuga — é confronto. Não é abandono — é retorno a si. E, quem sabe, um convite para que outras também tenham coragem de deixar de ser boneca e ocupar, com dignidade, o corpo, a casa e o mundo.

 

Agradecemos ao espaço Du Baco, da atriz Carol Hubner, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.