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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Aline Mohamad

Publicado em: 27/06/2025 |

Aline Mohamad, por Bob Sousa

 

Em um cenário onde a representação da negritude ainda é, muitas vezes, associada à dor e ao sofrimento, a dramaturga Aline Mohamad propõe um olhar diferente com o espetáculo “OZ”, da companhia Aquilombamento Ficha Preta. Sob direção de Rodrigo França e Tainara Cerqueira, a peça celebra o amor em suas múltiplas formas, fugindo das amarras sociais que tentam limitar quem pode amar e como amar. Falado em português e Libras, o espetáculo constrói um espaço de afeto, especialmente dentro da cozinha, lugar simbólico de memória e resistência para o povo preto. Inspirada em vivências familiares e na trajetória de sua tia Zeneb, Aline transforma a cena teatral em um convite para repensarmos os afetos e para ampliarmos as possibilidades de existência amorosa. Nesta conversa, buscamos compreender os processos criativos e as potentes escolhas que dão vida a essa obra sensível e necessária.

 

Bob Sousa –  “OZ” parte de uma memória muito pessoal, mas ganha uma dimensão coletiva ao tratar das formas de amar fora dos padrões sociais. Como foi transformar essa experiência íntima em um discurso que dialoga com tantas outras vivências?

Aline Mohamad – Acho importante dizer que, na verdade, OZ nasce de fora para dentro. Parte de uma visão macro, das minhas observações sobre o mundo e sobre quem a sociedade considera digno de receber amor e afeto. A primeira semente veio quando me deparei com uma palestra do filósofo Renato Nogueira, em que ele questionava: “Quais são os corpos descritos como passíveis de receberem amor?”. Aquilo me atravessou profundamente.
A partir daí, surgiu a vontade de falar sobre o amor. Mas não um amor idealizado, e sim um amor possível a partir dos nossos corpos: corpos pretos, gordos, trans, com deficiência. Quando olho para essas existências, vejo o quanto ainda são privadas de afeto, de desejo, de romantismo, como se a sociedade decidisse quem pode ou não viver o amor.
Essa inquietação ganhou ainda mais força quando perdi minha madrinha, que também era como uma mãe para mim. Ela era uma mulher surda de nascença, com uma sexualidade muito viva, mas que nunca viveu um amor romântico, nunca teve um namoro, um beijo na boca. Isso nos fez olhar para dentro da nossa própria família e perceber como o capacitismo, mesmo que inconsciente, estrutural, nos atravessa. Havia, por exemplo, essa ideia de que ela precisava estar sempre sob nossos cuidados, como se não pudesse ter uma vida afetiva plena.
Foi nesse momento que a trajetória do espetáculo ganhou forma. E o encontro com a história de vida do Edinho aprofundou ainda mais esse processo. Nos fez perceber o quanto todos nós, mesmo quem se considera mais “desconstruído”, ainda reproduz muitos desses preconceitos.Transformar essa experiência íntima num discurso mais amplo foi, ao mesmo tempo, um desafio e um mergulho necessário. Foi sobre olhar para dentro, reconhecer os ismos e as fobias que ainda nos habitam, e entender que desconstrução é prática diária. OZ acabou sendo uma experiência muito transformadora. Não só no fazer artístico, mas na forma como nos reorganizamos internamente para falar de amor a partir de uma perspectiva que é, sim, política, mas também profundamente sensível e humana.

Bob Sousa – A cozinha, no espetáculo, é um espaço central de troca e afeto. Como você enxerga a importância desse ambiente para a cultura preta e de que forma ele se conecta com o conceito de resistência que atravessa a peça?

Aline Mohamad – A cozinha, para nós, pessoas pretas, sempre foi socialmente colocada como um espaço de serviço. Mas a gente ressignifica esse lugar. A cozinha é, antes de tudo, um espaço de afeto, de aconchego, de cuidado e de oralidade. Quando trazemos a cozinha e a comida para a cena, estamos trazendo celebração, porque a gente gosta de celebrar, a gente tem esse tambor no corpo. Gosta de receber, de cozinhar para os outros, porque isso também é uma forma de transmitir afeto.
Quando falo, por exemplo, da minha avó dançando ao som de Adoniran Barbosa enquanto cozinhava, é porque ali, naquela cozinha, moram as minhas melhores memórias. Tenho poucas lembranças do meu avô paterno, porque ele faleceu quando eu ainda era pequena, mas lembro com nitidez da couve que ele fazia. Lembro dele cortando a couve com delicadeza, das histórias que contava, do cheiro da comida. É uma lembrança simples, mas carregada de presença e verdade.
A cozinha, para nós, é um lugar de memória e resistência. Enquanto muitos a veem apenas como espaço de trabalho, nós a transformamos num lugar de pertencimento. Quando dizemos que “entramos pela cozinha”, não estamos aceitando um lugar inferior. Estamos reivindicando esse espaço como nosso, como sagrado. Inclusive agora, enquanto respondo essa pergunta, estou na cozinha — o lugar que me reconecta com a vida todos os dias. É onde eu começo meu dia, preparo meu café, organizo meus pensamentos. A cozinha, para mim, é isso: um espaço de cuidado, de criação, de resistência preta — e de reinício, todos os dias.

Bob Sousa – A proposta de apresentar uma narrativa bilíngue em português e Libras é potente e inclusiva. Como foi pensar a dramaturgia e a encenação a partir dessa perspectiva de acessibilidade desde o início do processo criativo?

Aline Mohamad – Desde o início, essa proposta de uma narrativa bilíngue, em português e Libras, foi um desafio que a gente quis encarar de verdade. Quando começamos essa pesquisa, ainda na primeira apresentação, foi com a Aretha Sadick, uma mulher trans preta. A ideia inicial era que fossem três mulheres pretas trans em cena. Mas, com o tempo, e especialmente depois da perda da minha tia, sentimos que a direção da peça estava mudando. Foi nesse momento que entendi que precisava ter um ator surdo. Eu já conhecia um ator preto e surdo no Rio, que eu admirava muito, e pensei: “É ele que eu quero”. Não foi possível com ele, mas então encontramos o Edinho.
A partir daí, agarrei essa ideia com força: precisava ser um ator surdo, precisava trazer essa presença. Comecei a buscar homens pretos surdos para o elenco. E isso também se conectava com a história da minha tia, que não falava português, e mesmo sem falar muito, achava que falava. Havia uma conexão ali que precisava ser explorada.
Quando o Edinho chegou, tudo mudou. No início, claro, ele chegou mais reservado. E com razão. Ele já devia ter passado por muitas experiências difíceis, com capacitismo, com racismo. Mas fizemos questão de recebê-lo com todo o carinho, e o primeiro encontro foi na minha cozinha, com um grande jantar. Foi ali que começamos a criar vínculos, e ele começou a compartilhar sua vivência. E foi nesse momento também que comecei a perceber o nosso próprio capacitismo, até dentro da minha família, e o quanto esse processo precisava ser também de escuta e de transformação.
A presença dele validou ainda mais a pesquisa. E com ele vieram as intérpretes. No começo era uma só, até entendermos que precisávamos de duas. Foi um risco que assumimos, mas um risco necessário. E que bom que assumimos, porque estar com o Edinho em sala de ensaio é um presente. Ele vai ensinando Libras para a gente, e a gente vai aprendendo aos poucos. Não vamos sair fluentes, mas já conseguimos nos comunicar. A gente se esforça, a troca acontece. É muito emocionante ver como a barreira da linguagem vai se dissolvendo.
Ter as intérpretes, ter a Letícia também, que entrou de cabeça nesse processo, tudo isso nos ensinou muito. Hoje conseguimos entender e sermos entendidos por pessoas surdas que vêm falar com a gente no final da peça. Isso é uma prova de que a comunicação vai muito além da língua falada. É sobre entrega, escuta, disposição para aprender, vontade real de incluir.
Essa experiência foi e continua sendo transformadora. A gente aprende todos os dias com ela.

 

Agradecemos ao espaço Du Baco, da atriz Carol Hubner, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.