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Vetusta Contemporaneidade

Publicado em: 26/06/2018 |

MAURÍCIO PARONI

Especial para a SP Escola de Teatro
Chá e Cadernos 100.10

A escolha de um zênite orientador de sentido para conhecer o objeto de uma experiência de palco facilita – e possibilita – o trabalho naquele pântano de convicções fátuas que é a condição mental do artista de teatro. Assim aprendi e assim procedo, sem deixar de respeitar qualquer postura divergente, além da sagrada práxis autocritica diária. Atividade pré industrial, é preciso escolher uma fé cênica para construir o qualquer artesanato, mesmo que esta inevitavelmente seja mudada. Utilizo William Shakespeare (1564-1616) para a ficção e Samuel T. Coleridge (1772-1834) para o que parece ser real. Uma fé contrapõe a outra. Quanto a quem nos rodeia, as duas evidenciam a falácia dos picaretas versus o suor de quem trabalha serio num palco. Não é pouco num trabalho feito quase exclusivamente de relações humanas.

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As maiores falácias que vi no teatro – para citar um exemplo em relação a Shakespeare – aconteceram quando ressaltou-se a sua “atualidade” e a sua “contemporaneidade”. Faz-se isso por ser o poeta-dramaturgo um dos fundadores e definidores da sociedade do progresso; tamanha obviedade funde-se com todos os clichês consolidados por sua fortuna critica plurissecular. O leitor deseja ser um descolette no mundo do teatro? Invente uma “contemporaneidade” Shakespeariana e fale dela com pose de intelectual. De preferência, empregue uma conceituação afrancesada do tipo “lugar de fala”.

Vai saber a quantas interpretações da “contemporaneidade” de Shakespeare a arte de massa estará condenada a reproduzir, geração após geração. Parece um ciclo infinito, justamente pelo prestigio e lucro que isso gera a seus promotores.

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Uma formulação simbólica do próprio Shakespeare a nos advertir para esse fenômeno é a trama de Rei Lear. É crua como a simplicidade do nada: Um rei em idade avançadíssima quer manter “poder e pompa” alongados no tempo mediante a divisão do próprio reino entre as suas três filhas. Incentiva-lhes adulações quanto ao que sentem por ele, em veneranda vantagem. Uma das herdeiras declara, por parresia (*), o sentimento do “Nothing” – nada. Exprime o equilíbrio entre a esfera pessoal, racional e de Estado; por tal, acaba deserdada. As outras duas valem-se da hipocrisia, da ganancia de seus agregados e da iniquidade de um poder que emana da relação parental.

O curso inarrestável do tempo apanha a todos. O rei enlouquece ao perceber o seu erro. Uma primeira filha nega a necessidade de repensar a sua dependência; uma segunda filha usa a mesma dependência para traí-lo; a terceira acaba executada pela intriga gerada no disparate inicial daquele velho desprovido da autocritica necessária a quem exerce o poder politico. Afinal, ninguém pode criticar impunemente o poderoso, como demonstra a Hybris (afrontamento, neste caso) particular de todas as personagens daquela família.

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Shakespeare, o mais mutilado dos mutiladores teatrais, recriava tramas para criar poesia. Um pouco de cultura teatral de seus interpretes bastará para que a sua poética ilumine feericamente os caminhos deste mundo onde sobrevivem as nossas personalidades. Aliada ao tempo, a força poética do teatro pune a Hybris mais que chutar macumba sem motivo. William Shakespeare não precisa – nós tampouco – de quem nos venha demonstrar a sua “contemporaneidade”.

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O teatro é um ancião moribundo em eterna krisis (**) de si, desde o momento em que se realiza. Sua negação critica é o seu sacro paradoxo: morre a cada ação que se desenrola, a cada pensamento que suscita em quem dele participa, na exata cadencia dos segundos do tempo de nossas existências. Este senhor da pletora de passado e da historia presente admite somente a trama do agora.

Demonstrar a “contemporaneidade” de seus temas é tão inútil e incerto quanto conservar uma ainda mais incerta convencionalidade. A única e perfeita síntese dessa inutilidade desesperadora é, justamente, a imagem vertiginosa de Lear segurando a filha morta que renegou em vida e morrendo ao bradar:“(…) Sem vida! Por que tem vida um cavalo, um cão, um rato, e você não tem folego algum? Não voltará nunca, nunca, nunca, nunca, nunca!(…)” Ato V – Cena III (***).

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A extraordinária natureza do fenômeno teatral obriga o ator que manipula tais versos no palco a vibrar a própria morte diante de um publico para, poucos minutos após, levantar-se para ser aplaudido pelo ato… De morrer.

Ou de representar? Ironicamente, morrerá de verdade em pouco tempo – é usual que interpretes de Lear com esta personagem comemorem muitos “anos de carreira” e estejam relativamente bem perto da morte real; Um Rei Lear completo deveria convidar o publico ao certeiro funeral de seu protagonista. Este é o teatro em sua vertigem onírica.

Já o pragmatismo industrial e reprodutivo do cinema encerra um Lear mais “normalizado”. Sugiro este, convencionalíssimo, do ator inglês Lawrence Olivier (1907-1989): está sem legendas, mas a musicalidade diz tudo. Aqui, o momento em que ele divide o Reino e as filhas proferem seus discursos de hipocrisia e parresia: https://www.youtube.com/watch?v=aprnQoOqWwY.

Notas

(*)(ouvir este podcast sobre parresia clicando aqui: https://spescoladeteatro.org.br/audios/parresia-pod1-musicado.mp3 . Vale também reler este artigo: https://www.spescoladeteatro.org.br/papo-com-paroni-pessimismo-otimista )

(**)Do grego krisis, do mesmo étimo do verbo krino, separar, depurar, como se faz com o ouro, do grego krysos, onde está presente a raiz do sânscrito kri ou kir, limpar, cujos indícios estão também em crisol e acrisolar. O Dicionário Etimológico de Antenor Nascentes dá também os significados de momento decisivo, separação e julgamento. Há consenso entre diversos outros pesquisadores de que a crise leva à ruptura com o estado anterior. O novo rumo pode ser de melhora ou piora, tanto em medicina como em sociologia, onde o vocábulo é muito usado. Fonte : SILVA, Deonísio da. De Onde Vêm as Palavras: Origens e Curiosidades da Língua Portuguesa. Osasco, Novo Século, 2009. – In https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/crise

(***) Aqui, a versão sonora integral do texto, com Johon Gielgud, BBC Radio, 1994 https://www.youtube.com/watch?v=1JylxvHvdtA ; E a versão sonora do monologo que empreguei para a tradução do trecho citado: https://www.youtube.com/watch?v=byOIgaviNIc

 

Lawrence Olivier em King Lear, 1983