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Teatro e gerúndio

Publicado em: 07/04/2014 |

1- TRAUMA

Os traumas pelos quais passamos só podem ser absorvidos em câmera lenta! No consultório, mais de uma década atrás, uma paciente cujo irmão se jogou do trigésimo andar de um prédio levou três meses para vê-lo (realizá-lo) caído: num sonho, finalmente, o irmão morto, estendido no chão.

Antes disso, ela o via caindo, sempre caindo, como uma catarata medonha. Dormir era um terror. Pois em seus pesadelos a ideia da morte do irmão vinha colada à imagem dele caindo, sem nenhuma distância. Assim: Irmão-morrendo… Memória e acontecimento, unidos. Indivisíveis.

O tempo afastará um do outro. Mas antes que transcorra um intervalo suficiente, o sonho não é símbolo de coisa nenhuma, nem quintal de prazer, nem uma cena em que há desejo. Ele é apenas repetição da tragédia, num moto perpétuo. Sonhar é, nesse caso, repetição de dor: assistir ao irmão morrer de novo e de novo e sempre. Pior: é vê-lo morrendo sem parar. Repito: Sem parar de morrer. Ação que não se conclui, cristalizada no pior.

Os sonhos, ao contrário, deveriam ser tentativa de construir uma metáfora, ali onde um dia houve um fato. Sonho é mediação: lembrança modificada e construída a partir de um desejo e de um acontecimento passado. Sonho é a circulação de representações pelo psiquismo – e não circulação de acontecimentos. Sonho é processo de digestão simbólica. Mas, nesses casos de dor imensa, os sonhos são unicamente retorno à tragédia e, no lugar de uma marca de memória, encontramos o acontecimento-terrível-acontecendo-outra-vez.

Acontecimento real em tempo real. Impacto do suicídio. Abandono do irmão. Produção não de prazer, mas de dor. Diferentemente dos sonhos ordinários, pesadelo é o trauma de assistir a um gerúndio: um corpo caindo, irreversível. Pesadelo se refere ao irrepresentável. Transbordante, não cabe em si.

Até que um dia, ela (a paciente) recupera a capacidade de sonhar: eis a perna do irmão caído, para fora do cobertor que o cobria. Sonho é estratégia, ciência do corpo, drible na culpa por se estar vivo, retomada do caminho para, enfim, adormecer. E sonhar. E então esquecer!

Quanto maior o tempo que levamos para transformar um acontecimento em memória – o “acontecendo” num “acontecido” –, maior o trauma envolvido, maior a exigência de trabalho psíquico.

Casos de melancolia são aqueles em que essa elaboração nunca se conclui, aprisionando o sujeito num luto eterno. Congelado. Os pacientes nos procuram justamente para converter certos fatos dolorosos de suas biografias em particípio passado, em recordação, em algo que pode ser lembrado e digerido e, por consequência, adiante, esquecido.

Note-se que o irmão caído aparece somente três meses depois da queda. Antes disso, era um irmão caindo. Livrar-se do gerúndio e ingressar no particípio passado é uma operação sofrida e trabalhosa que inclui mecanismos de amortecimento de uma percepção esmagadora. O corpo do irmão cai muitas vezes antes de se posicionar “caído”. E então se inicia o processo de esquecimento da cena. Por erosão e por desgaste!

Rituais de luto – enterro, cremação, velório, missa – servem como etapas na passagem do traumático ao simbólico, do gerúndio ao particípio passado, do morrendo ao “morrido”.

Pois bem! No Teatro, o Acontecimento sempre foi um propósito perseguido, com o nome de Artaud como aquele que mais se aproximou dessa realização. Um acontecimento sem derivações e “irrepetível”. Tão inédito, que não haveria códigos para absorvê-lo. A não ser em câmera lenta, como se faz com um trauma.

Esse Teatro, para o qual Artaud aponta, se flexiona também no gerúndio: ainda antes de ser um Acontecimento, ele é um Acontecendo. Em tempo real e num presente contínuo. E essa alteração das temporalidades, em que os espectadores são arremessados, teria que ser mesmo a essência do Teatro.

2- LOUCURA

Num certo dia, não tão distante, em suas experimentações, o Teatro rompeu a quarta parede. Desse modo, a suspensão da descrença foi colocada em xeque, mas evidentemente subsistiu. Quem, antes do Teatro, já havia desafiado essa mesma fronteira?

Na Psicose, como se sabe, as convenções são recusadas. Não há submissão às gramáticas da Lei. O psicótico não partilha de uma hipnose coletiva à qual, todos nós, neuróticos, estamos submetidos. Ele não atravessou a castração, como o resto de nós. Para o psicótico, a quarta parede há muito tempo foi rompida, ou nunca foi construída.

Um teatro feito por psicóticos seria absoluto!

Eis aí um dos canais por onde o Teatro conversa com a Loucura. Fazendo falar, por pressão, a lucidez nela embutida. E fazendo ação e pensamento coincidirem, como num pesadelo.

Quem já não viu um louco de rua perambulando pela cidade? Sua área de frequentação é ampla, como o território de um tigre. Podemos vê-lo vagando pelos limites da Zona Leste de São Paulo pela manhã, e zanzando bem no Centro da cidade, no final da tarde, a vinte quilômetros do ponto inicial. Ele não cansa?

No gerúndio, o louco fica capturado num percebendo/percebendo e num caminhando/caminhando, feitos sinônimos. Ação e pensamento são um só. Como se a extremidade perceptiva do psiquismo – que o louco atinge bem em cheio, sem proteção – se fizesse também magicamente polo motor. Eu percebo e ajo, e ambos são uma coisa só! Num arranjo em que fica invertido aquilo que se lê nos versos de “Fado tropical”: Se trago as mãos distantes do meu peito, é que há distância entre intenção e gesto! Não há mais distância entre mãos e peito!

Mesmo distorcendo os dados da realidade, na psicose, a percepção fica tremendamente aumentada, como se cada objeto do mundo estivesse sendo apreciado pela primeira vez. Cada coisa do mundo em sua singularidade máxima! Essa “primeiridade” afeta diretamente a vivência da dimensão temporal.

Os atores também experimentam no palco a temporalidade peculiar que o Teatro revela; e que se articula com o tema do traumático, daquilo que não é absorvido tranquilamente com os repertórios de que dispomos. Temporalidade familiar ao dicionário do psicótico, como se vê.

Não é cronológico esse tempo (do Teatro e da Loucura). Ele se dilata e se abre, permitindo que os artesãos da cena o habitem de modo a atrasar ou adiantar os relógios. Talvez o talento dos grandes atores e atrizes esteja em sua sabedoria secreta de desafiar os ritmos naturais, quando em cena, alterando-os. De modo tal que eles, os grandes, não trazem as mãos distantes do peito: intenção já é gesto!

3- SÍMBOLOS 

O desdobramento dessa operação de pôr em marcha o gerúndio é a perda provisória (permanente na psicose) de referências de base. Tal como uma ruptura epistemológica que nos instiga a reinventar e reinstalar o registro simbólico. Simbólico que, por ser linguagem, nomeia; e, nomeando, atenua, faz mediação, impõe intervalos, obriga que haja alguma distância, separando intenção, gesto, peito, mãos. Nomear civiliza. Na ausência do nome, um corpo caindo…

Expressando aqueles traumas que só conseguimos decodificar em câmera lenta, além da vizinhança com a Loucura, o Teatro reafirma também seus laços com o enigma da morte.

Mas estas articulações não deveriam surpreender, pois há uma porção traumática embutida nos processos de criatividade, sempre. O ato de criação, ao pretender ser inaugurador, desafia a barbárie. Como se o artista abrisse portas proibidas, num atrevimento que envolve nudez e desamparo.

Desamparo por estar sempre aquém, torturado pelo real, com seus dispositivos simbólicos insuficientes para dar conta da realidade. Uma parte de mim é só vertigem. Outra parte, linguagem, diz a poesia de Ferreira Gullar. É curto o cobertor simbólico! A perna ficou de fora. Nas artes e na vida, território é maior que mapa!

O artista está sempre nas bordas, na fronteira da linguagem, buscando distinguir formas onde há apenas intensidades sem nome. Ali nos confins, onde a palavra ainda não chegou. Ao proceder assim, ele ocupa lugares necessariamente perigosos, em que poderosas forças estão em jogo de atrito, e coloca-se exposto e vulnerável. Nesse sentido, justamente, afirma Goethe: É próprio de nosso espírito supor confusão e trevas onde não sabe o que tem a esperar. No campo das artes, ao interrogar os mistérios, o artista voluntariamente corre riscos.

Pela intensidade, a experiência amorosa pode também nos colocar nessa mesma temporalidade que aqui chamei de gerúndio. A adrenalina da paixão dura os mesmos exatos três meses. Pois, mais que isso, o organismo não aguentaria. Maremoto de hormônios. Depois, a paixão pode virar amor!

4- VERTIGEM 

Em 1985, perdi uma amiga próxima, subitamente arrancada da vida por um aneurisma fatal. Como ela estivesse geograficamente distante, pelo Oriente Médio, e eu aqui no Brasil, trocávamos correspondências com frequência – única forma de comunicação naquela época (telefone fixo era caro demais para nós). As cartas às vezes demoravam até mesmo um mês para chegar. Por esta razão, suas mensagens continuaram a me encontrar, bem depois de seu falecimento.  Como estrelas já extintas, cujo brilho segue indiferente ao fato delas estarem mortas.

As cartas escritas (tão vivas), vindas de alguém querido e morto, eram como uma nova notícia de morte. Colocavam-na sempre morrendo, à semelhança do irmão da paciente, congelado num sempre-caindo. Uma carta escrita é a voz de uma pessoa ausente, diz Freud. Isso nunca foi tão verdadeiro quanto naquele ano de 1985.

Para estar de acordo com as ideias aqui esboçadas, teríamos de reconhecer que toda pessoa que morre segue mandando mensagens, jogando-nos – a nós, os vivos – na vertigem de um sempre morrendo

Bem… Até que uma sofisticada operação psíquica – chamada recalque – cuide de converter a cena em passado, apta a ser esquecida. Entretanto, isto só depois de um trabalho canibal de devoração, refeição totêmica, em que as qualidades da pessoa amada são incorporadas, passando a circular no sangue daquele que sobreviveu, engordando-o. Libertação!

A partir destas considerações, Psicanálise poderia ser definida, então, como a Ciência do Esquecimento; e o Teatro, que nos atira na Vertigem, seria uma espécie de Tubo de Ensaio de Fazer Gerúndios…

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]

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