
*em outubro, a SP Escola de Teatro promoveu um intercâmbio que levou dez estudantes a Jena, na Alemanha, para intensas trocas pedagógicas e artísticas. A seguir, o formador da Escola Francisco Turbiani reflete sobre a experiência
Sobre as formas artísticas da vida ou de quando nos lembramos do porquê fazemos teatro
por Francisco Turbiani, formador do curso de Iluminação da SP Escola de Teatro
Entre os dias 1º e 12 de outubro de 2025, viajei para a cidade de Jena, na Alemanha, acompanhado de dez estudantes de teatro da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. Junto comigo estava o diretor teatral e artista docente convidado da escola Fabiano Lodi, dividindo a função de liderança do grupo brasileiro e responsável por ministrar um workshop de teatro, baseado em nossas práticas artístico-pedagógicas no Brasil. O projeto, chamado Stay or Leave, reuniu jovens e artistas da Alemanha, Brasil, Turquia e Líbano para discutir o significado de liberdade e mobilidade para esse grupo tão diverso de participantes, tendo o teatro – e a dança – como o motor condutor desse encontro.
Nossa rotina diária, ao longo desses doze dias, se iniciava com esse grupo de cinquenta pessoas se reunindo em uma grande roda de partilha e troca. Essa prática me lembrou Denis Guénoun, em seu livro A Exibição das Palavras: Uma Ideia (Política) do Teatro, e a defesa do círculo como forma fundamental da linguagem teatral. O círculo é a disposição espacial onde todos se colocam como iguais, todos se veem como iguais e todos têm as mesmas posições para falar, ver e ouvir. É o espaço da assembleia, da reunião, do encontro, da troca. E é o espaço natural do teatro, pois é o teatro também o lugar de todas essas coisas.
Além de todas as propostas teatrais e temáticas programadas, o projeto previa que o grupo de cada país preparasse uma noite cultural, partilhando um pouco de sua cultura e de sua comida. O resultado foram belos encontros em que pudemos perceber o quanto, ao mesmo tempo que somos diferentes, somos tão parecidos. E pudemos, naturalmente, festejar e gozar a vida comendo, bebendo e dançando, sempre que possível ao redor de uma fogueira, para nos aquecer do frio noturno do outono alemão. E, vendo esses momentos de festejo, lembrei-me dos antigos ritos dionisíacos e pensei em como o teatro, em suas diferentes manifestações ao redor do mundo, tem, com tanta frequência, sua origem na dança, no canto, na festa, na celebração.
O que fazer quando a vida ao nosso redor é carregada daquelas qualidades que tão insistentemente buscamos e valorizamos em nosso fazer artístico: o encontro, a conexão com o outro, o estar no tempo presente de forma integral, o festejo à vida? Pois não é esse o ponto fundamental do porquê escolhemos fazer teatro? A busca por uma arte que seja carregada dessas qualidades? Para além das questões técnicas e tecnicistas da linguagem teatral, não é a possibilidade do encontro que nos move?
Então, fizemos teatro. Ao longo de dois dias, realizamos quatro workshops de teatro e dança que deveriam resultar em um breve fragmento cênico. Assim como as culturas de nossos países se mostraram tão diferentes e tão parecidas ao mesmo tempo, foi curioso ver como cada workshop, trabalhando linguagens da cena tão diversas, resultou em materiais cênicos também, ao mesmo tempo, tão diferentes e tão parecidos. O resultado foi apresentado na forma de um grande cortejo pela cidade de Jena, percorrendo diferentes espaços públicos onde cada cena era apresentada.
Após a apresentação, fiquei pensando como, ao longo de minha breve trajetória de treze anos como professor na área teatral, raras vezes vi um material cênico com tanta qualidade artística preparado em um espaço de tempo tão pequeno. Agora, já um pouco – mas não muito – distante, pelo tempo, dessa experiência, percebo que já estávamos fazendo teatro e arte desde o primeiro dia do projeto; os workshops foram somente a maneira de organizar tudo o que estávamos vivendo em uma forma cênica para ser apresentada.
No regresso ao Brasil, voltei às atividades da SP Escola de Teatro em uma semana intensa, logo antes das aberturas de processo dos exercícios teatrais desenvolvidos pelos estudantes, os experimentos. Cheguei à nossa unidade Roosevelt justamente quando estava sendo descarregado o carreto vindo da unidade Brás, repleto de elementos cenográficos, estruturas, figurinos, adereços. Vários estudantes carregando e descarregando o elevador, distribuindo os materiais em cada andar. Completam o quadro caótico pessoas carregando caixas de som, mesas de luz, cabo que passa para cá, refletor que passa para lá, atores passando cena e batendo texto pelos corredores. Em meio a essa desordem organizada, onde aos poucos as coisas vão tomando seus devidos lugares para os últimos ensaios, percebi-me absolutamente animado e instigado com esse ambiente.
E percebi-me, nos dias seguintes, aqui no Brasil, assistindo às cenas em processo desenvolvidas pelos alunos, absolutamente animado com o processo, com a criação, com a troca, com o teatro. E fui percebendo o quanto gosto desse caos da criação teatral. E lembrei-me de por que faço teatro, de por que gosto de estar em uma escola onde se faz teatro. Às vezes, é preciso sair e voltar para poder olhar para as nossas próprias coisas como um estrangeiro e poder ver a riqueza do que temos.
No último dia do projeto em Jena, ao me despedir de todos os demais participantes, notei que estava dizendo sempre um efusivo “muito obrigado”. Não era um “até logo”, “adeus”, “até breve”. Era “obrigado” mesmo. Agora, pensando bem, entendo que era um agradecimento por me ajudarem a lembrar daquilo que a rotina, o tempo, o trabalho às vezes fazem com que caia no esquecimento: “Obrigado por me lembrarem do porquê escolhi fazer teatro”.
São Paulo, 22.10.2025
Leia a seguir a versão em inglês:
On the Artistic Forms of Life, or When We Remember Why We Do Theater
by Francisco Turbiani, instructor of the Lighting Design course at SP Escola de Teatro
Between October 1 and 12, 2025, I traveled to the city of Jena, Germany, accompanied by ten theater students from SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. With me was theater director and teaching artist Fabiano Lodi, sharing the role of leader of the Brazilian group and responsible for teaching a theater workshop based on our artistic and pedagogical practices in Brazil. The project, called Stay or Leave, brought together young people and artists from Germany, Brazil, Turkey, and Lebanon to discuss the meaning of freedom and mobility for this diverse group of participants, using theater—and dance—as the driving force behind the encounter.
Our daily routine during those twelve days began with the group of fifty people gathering in a large circle to share and exchange ideas. This practice reminded me of Denis Guénoun, in his book L’Exhibition des mots: Une idée (politique) du théâtre, and his defense of the circle as a fundamental form of theatrical language. The circle is the spatial arrangement where everyone stands as equals, everyone sees each other as equals, and everyone has the same position to speak, see, and listen. It is the space of assembly, of meeting, of gathering, and of exchange. And it is the natural space of theater, because theater is also the place of all these things.
In addition to all the theatrical and thematic proposals planned, the project called for each country’s group to prepare a cultural evening, sharing a little of their culture and food. The result was a series of beautiful encounters where we could see how, while different, we are also so similar. And we were able to celebrate and enjoy life—eating, drinking, and dancing, whenever possible, around a bonfire to warm ourselves from the chilly German autumn nights. Watching these moments of celebration, I was reminded of the ancient Dionysian rites, and I thought about how theater, in its different manifestations around the world, so often has its origins in dance, song, and festivity.
What should we do when life around us is filled with those very qualities we so insistently seek and value in our artistic practice—the encounter, the connection with others, being fully present in the moment, the celebration of life? Isn’t that the fundamental reason we choose to do theater? The search for an art form imbued with these qualities? Beyond the technical and technicist aspects of theatrical language, isn’t it the possibility of encounter that moves us?
So we did theater. Over two days, we held four theater and dance workshops, each of which was to result in a short scenic fragment. Just as the cultures of our countries proved to be so different and yet so similar, it was fascinating to see how each workshop, working with such diverse scenic languages, resulted in material that was also, at once, so different and so similar. The results were presented as part of a large festive procession through the city of Jena, passing through various public spaces where each scene was performed.
After the presentation, I reflected that throughout my thirteen years as a theater teacher, I had rarely seen theatrical work of such artistic quality produced in so little time. Now, a little—but not too—removed from that experience, I realize that we had been making theater and art from the very first day of the project. The workshops were simply a way of shaping everything we were living into a scenic form to be shared.
Upon returning to Brazil, I resumed my activities at SP Escola de Teatro during an intense week, just before the presentations of the theatrical exercises developed by the students—what we call experiments. I arrived at our Roosevelt campus just as the truck was being unloaded, coming from the Brás campus, full of scenic elements, structures, costumes, and props. Several students were loading and unloading the elevator, distributing the materials across the floors. Completing the chaotic scene were people carrying speakers, lighting desks, cables going this way and that, spotlights being moved, actors rehearsing scenes and running lines in the hallways. Amid this organized disorder, where things gradually found their places for final rehearsals, I found myself deeply energized and inspired by this environment.
In the following days, back in Brazil, watching the scenes being developed by the students, I realized how excited I was about the process, the creation, the exchange, the theater itself. And I realized how much I love this creative chaos of theater-making. I remembered why I do theater, and why I love being in a school where theater is alive. Sometimes, one must leave and return in order to look at one’s own things as a stranger—and see the richness of what one has.
On the last day of the project in Jena, as I said goodbye to the other participants, I noticed that I kept saying an effusive “thank you very much.” It wasn’t “see you later,” “goodbye,” or “see you soon.” It was “thank you,” truly. Now, thinking about it, I understand that it was gratitude for helping me remember what routine, time, and work sometimes make us forget: Thank you for reminding me why I chose to do theater.
São Paulo, October 22, 2025