por Ivam Cabral, diretor-executivo da SP Escola de Teatro
O Módulo Amarelo é o território onde a narrativa deixa de ser apenas forma e passa a ser pulsação. Conta-se para existir, escreve-se para não desaparecer. Neste processo, cada núcleo se debruça sobre a arte de fabular o mundo, reinventando memórias, conflitos, desejos e silêncios em dramaturgias que nascem do corpo, da escuta e da experiência compartilhada. Os comentários aqui são menos registros técnicos e mais vestígios sensíveis de um semestre em que a palavra, a cena e o encontro se tornaram matéria viva. São retratos de processos atravessados por risco, delicadeza e intensidade, onde cada grupo construiu seu próprio jeito de dizer: “estamos aqui”.
*As fotos são de Clara Silva
Núcleo 1 – Praça das Renúncias
Na véspera de Natal, dois desconhecidos buscam abrigo no coreto da Praça da República. A chuva suspende a pressa, encurva o tempo e transforma o acaso em confidência. Um carteiro, que carrega cartas talvez sem destino, e um barista, que segura xícaras que talvez nunca mais aqueçam, descobrem que renunciar também é uma forma de começar. Entre o que faltou ser dito, os dois se lançam numa última travessia: revelar o que o silêncio protegeu. O núcleo, amplo como a própria praça, articula dramaturgia, direção, som e luz para construir um espaço onde o humano não é tese. É pulsação. Da segunda para a terceira abertura, o trabalho ganhou clareza, rigor e delicadeza. Onde havia névoa, surgiu forma. Sóbrio, inventivo e profundamente humano.

Núcleo 2 – Você Tem 25 Minutos Para Imaginar um Novo Mundo
A pergunta inaugura o abismo: e depois do fim? Entre ruínas, cinzas e respirações curtas, o Núcleo constrói uma máquina de futuros possíveis. Os 25 minutos não são apenas tempo. São metáfora da urgência. Intérpretes, dramaturgos e criadores de luz, som, cenário e espaço recolhem restos do presente para tentar mineralizar um amanhã respirável. Aqui, imaginar não é escapar. É agir. É política em estado bruto, ética em combustão. O futuro como invenção antes de existir. O trabalho amadureceu intensamente, e o que parecia dificuldade virou força coletiva. A revelação da estudante grega da UniArts de Oslo, na Noruega, Aikaterini Maria Kalantranaki, que chegou dramaturgista e se afirmou como diretora potente, sintetiza com beleza o espírito do grupo.

Núcleo 3 – Ô de Casa!!!
Há um território feito de desembarques. Mãos que plantam chegadas, recolhem partidas e sustentam restos de travessia. Barcos e poeira se cruzam como memórias insistentes, enquanto as diferenças cintilam em espelhos gastos. Pergunta-se como dividir o que é pouco. Descobre-se que partilhar é a única forma de permanecer. O Núcleo inventa uma casa onde portas e janelas são afetos, e o palco vira abrigo. Direção, dramaturgia, iluminação, sonoridades e corpo compõem uma cena de chão, poeira e reinício. Uma surpresa bonita. Onde antes havia fragilidade, agora há um grupo atento e firme, capaz de transformar falta em linguagem. O nomadismo virou gesto. E a casa, enfim, apareceu.

Núcleo 4 – 1 por 1 por 1
Num prédio de apartamentos mínimos, a vida se comprime entre frestas, paredes finas e escutas involuntárias. Corpos respiram apertados pelas vozes alheias e pelas ausências que pesam. Quando a tempestade cai, o sono infiltra sonhos pelas rachaduras e os desejos ousam delirar. Ao amanhecer, resta a fenda silenciosa, espaço microscópico de reinício para quem ainda escuta o próprio ruído interno. O núcleo constrói, com dramaturgia, luz, figurino, sonoplastia e direção, uma miniatura do mundo real, onde cada gesto revela o que tentamos esconder. Trabalho preciso, linhas de pesquisa bem definidas e um coletivo atento. Quando os ruídos se afinam e a paisagem se organiza, o sentido emerge. Mérito compartilhado e amadurecido.

Núcleo 5 – Esqueceram de Nós
Crianças deixadas sozinhas, cercadas de tarefas e fantasias, organizam a rotina como quem ergue mundos frágeis. Jesualda, exaurida, transforma o cotidiano em jogo, enquanto um doce com asas promete recompensas a quem conseguir reinventar a ordem. Mas a infância, sempre à beira do abismo, encara a sombra do Homem da Capa Cinza, presença que ameaça o que ainda não amadureceu. Entre terror e ternura, cuidado e susto, o núcleo revela onde repousa a coragem quando os adultos faltam: no delírio dos pequenos, que resistem sem nomear exatamente contra o quê. Um trabalho que ouviu atentamente as avaliações, redesenhou percursos e assumiu riscos, embora algum problema técnico tenha levado o grupo a cancelar uma das apresentações.

Núcleo 6 – [Minga]tórios
Num pequeno prédio ocupado por seis vizinhos-pássaros, a demolição se anuncia para dar lugar a um estacionamento. Forçados a se olhar pela primeira vez, descobrem que sobreviver exige mãos dadas. Inspirados na tradição chilena da minga, decidem carregar o prédio inteiro para outro terreno. Um gesto poético contra qualquer sentença de fim. A arquitetura em deslocamento vira símbolo. Quando a cidade expulsa, o coletivo sustenta. Quando a estrutura cai, a comunidade ergue. O Núcleo 6 nos lembra que só se vive com o que se leva junto. Já belo na segunda abertura, reaparece agora com maior unidade e harmonia. Há firmeza de linguagem, afeto como método e pertencimento refletido na cena.

Núcleo 7 – Qual é Mesmo o Nome Dela?
No Hotel Estrela de Babel – metáfora do desencontro das línguas – um escritor tenta inventar ficção enquanto a camareira, tão real quanto invisível, atravessa os corredores sem deixar vestígios. Um vazamento transforma o prédio num território de contaminações, onde vivido e imaginado se dissolvem. Quando decide reescrever sua própria história, a camareira toma a palavra que sempre lhe foi negada. O núcleo, múltiplo em humor, luz, dramaturgia e direção, ensaia um gesto ético: devolver protagonismo a quem sempre esteve atrás das cortinas. Estudo encantador de linguagem e presença. Mesmo na comédia, pulsa uma poesia triste – dessas que apertam a garganta por três lágrimas que se recusam a cair.

Núcleo 8 – Céu Quadrado
Uma trupe perseguida por ousar o improvável é expulsa de sua terra e tenta recomeçar em São Paulo. Num cortiço sem janelas, onde baratas, precariedade e suspeitas dominam, a morte de Melitah inaugura o enigma. Aqui, o céu é quadrado. E o alto só se insinua pelos limites estreitos da falta. Ainda assim, o núcleo insiste na fresta: o teatro como denúncia, canto e sobrevivência. Entre humor, rigor dramatúrgico e direção precisa, os criadores reinscrevem exílio, marginalização, sonho e permanência. Trabalho de poesia fina, em que o coletivo se afirma delicado e estruturado. Há clareza, urgência e humanidade suficientes para que a respiração continue, mesmo quando o teto aperta.

Epílogo Amarelo
Neste eixo Amarelo, permanecerá a sensação de que algo foi contado para não se perder. As narrativas que atravessaram os núcleos não buscaram apenas construir histórias, mas criar lugares de escuta, memória e invenção. Houve palavra que virou corpo, corpo que virou paisagem, silêncio que virou gesto. Cada processo ensinou que narrar não é organizar o mundo, mas se arriscar dentro dele. Encerramos este ciclo com a certeza de que algo permanece vibrando. Porque toda boa narrativa, quando termina, continua trabalhando dentro da gente.
E viva o teatro!
