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OS VERMELHOS | Friccionar o Mundo

Por Ivam Cabral, diretor-executivo da SP Escola de Teatro

O Módulo Vermelho é o território onde o conflito deixa de ser apenas tema e passa a ser pulsação. Entra-se em cena para enfrentar, friccionar, colidir. Aqui, cada núcleo se debruça sobre as forças que tensionam o mundo, investigando confrontos entre corpos, ideias, afetos, poderes e silêncios em dramaturgias que nascem do atrito, do embate e da urgência. As resenhas que se seguem são menos relatos de processos e mais rastros quentes de um semestre em que a cena se fez choque, risco e pergunta. São retratos de experiências atravessadas por instabilidade, coragem e intensidade, onde cada grupo construiu seu próprio modo de dizer: “é aqui que lutamos”.

*As fotos são de Clara Silva

Núcleo 1 – [Entre] [Linhas]

O trabalho nasce do gesto mínimo que provoca o abalo máximo: um trem que freia, um instante que suspende, uma multidão que, subitamente, é obrigada a se ver. Trabalhadores, migrantes, estudantes, turistas. Corpos que se cruzam sem nunca se deter – descobrem, com o colapso da máquina, que a invisibilidade também sangra. Na Estação da Luz, onde o tempo é rasgo e reencontro, cada personagem enfrenta o espelho duro da metrópole encarcerada na solidão afetiva. O teatro se torna laboratório documental. Como respiram os que vivem comprimidos na cidade que nunca cessa? O núcleo, vasto e atento, costura dramaturgia, direção, luz, som, cenários e presença para desmontar superfícies e revelar o que pulsa por dentro.

Experimento III do grupo N1 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Núcleo 2 – Cidade Sarandalhas

Na espinha dorsal do Núcleo 2, “Cidade Sarandalhas” se ergue como um ato de rebelião poética. Uma cidade-ralo, encarregada de impedir a inundação de Brasirragoni, é condenada à evacuação. Mas seus habitantes – os ninguém, os esquecidos – recusam-se a desaparecer. Marcham rumo à capital exigindo aquilo que sempre lhes foi negado: o direito de existir. Há, nessa dramaturgia, a urgência da reivindicação coletiva, o grito que nasce quando a história insiste em escorrer pelo ralo. “Sarandalhas”, frágil e invisível, torna-se símbolo dos que sustentam mundos sem serem notados. Figurinos de grande beleza, atores carismáticos, dramaturgia pulsante, cenários instigantes, direção segura e músicas criadas especialmente para a obra costuram uma cena vibrante, atravessada por força, invenção e afeto.

Experimento III do grupo N2 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Núcleo 3 – Dentro

“Dentro” mergulha na distopia íntima. AndreIA, andróide lapidada por implantes e tecnologias, acessa seu “Cyber Cérebro” para rastrear a falha que a atravessa. No ruído do tetaphone que pifa, irrompe a pergunta essencial: onde termina a máquina e começa a ferida humana? A cena funciona como um escaneamento sensível: memórias artificiais, consumos produzidos, próteses emocionais e a solidão como cicatriz original. AndreIA enfrenta o vazio que o mercado tenta preencher com upgrades, até perceber que a identidade, quando vendida, se dilacera. O núcleo, fértil em dramaturgia, direção, técnica e invenção visual, constrói essa travessia sem retorno com rigor e potência. Trabalho consistente, em que as linhas de estudo se encontraram com harmonia, fazendo emergir temas contemporâneos em sintonia com o projeto do grupo.

Experimento III do grupo N3 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Núcleo 4 – Mete Gala

Em “Mete Gala”, o Núcleo 4 atravessa a noite pelo território do Grand-Guignol, com humor ácido, atmosfera macabra e prazer pelo excesso. Um bordel divertido, povoado por garotas de programa, se oferece como palco de negociação, desejo e disputa. Mas uma sequência de mortes corrói essa superfície festiva e expõe fissuras que já existiam. Por trás do riso nervoso, o texto convoca questões duras de sobrevivência, poder e violência. Quem vence quando o corpo vira mercadoria até mesmo na morte? Entre dramaturgia, figurinos, sonoridades e luz, o núcleo constrói uma narrativa que ri para não tombar. E dança à beira do abismo. A cena se equilibra entre leveza e (muita) brutalidade, num jogo permanente de tensão e ironia. Um trabalho que provoca adesões ou recusas radicais, sem território de meio-termo: ou se ama, ou se rejeita. Como toda obra de arte deveria ser. Afinal, toda unanimidade é burra, já nos ensinou Nelson. E a cena que se arrisca é sempre aquela que aceita pagar o preço do desacordo.

Experimento III do grupo N4 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Núcleo 5 – Aonde Foi Federico?

“Aonde Foi Federico?” devolve ao teatro a paisagem da infância como território de mistério e revelação. O boneco preferido de Mel desaparece, e um bicho de pelúcia ao lado de um fantoche de meia decidem atravessar mundos improváveis para resgatá-lo. Bobstick, menino aprisionado nos jogos; a Sra. Jasmim, que canta memórias; e Rabujo, figura enigmática, formam esse mapa afetivo de busca. A aventura fala de amizade e coragem, mas também de solidão. Mel descobre que estar só pode ser caminho e descoberta, e que a fantasia é porta secreta para o que a vida ainda não ousou dizer. O núcleo desenha um universo mágico com pesquisa sensível e bem articulada, em que as linhas de estudo operam com eficiência e bastante delicadeza.

Experimento III do grupo N5 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Núcleo 6 – Ministério da Solidão

O Núcleo 6 cria “Ministério da Solidão”, onde uma repartição cinzenta, órfã de sentido, é sacudida pela notícia da visita do Excelentíssimo Ministro. Para recebê-lo, é preciso descer ao almoxarifado, o ponto mais esquecido do prédio. É nesse subterrâneo simbólico que emergem verdades que ninguém queria lembrar. Aqui, a solidão burocrática se revela como ferida coletiva, e servidores que sobreviveram escondendo pedaços de si encaram, enfim, seus próprios espelhos. O núcleo constrói essa fábula com humor preciso, cenografia potente, dramaturgia afiada e direção arrojada. O resultado é uma engrenagem cênica de rara coesão, em que cada elemento – da atuação à luz, do som aos figurinos – trabalha em escuta fina para a cena.

Experimento III do grupo N6 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Núcleo 7 – Quando a Maré Baixa, a Solidão Fica

Este trabalho é travessia de água e memória. Pescadores, mães e filhos enfrentam ausências que o mar – arquivo ancestral daquilo que tentamos soterrar – insiste em devolver. Cantos, risos e histórias atravessam a cena, enquanto uma figura silenciosa acompanha o ritmo da maré. Depois da tempestade, ela se revela junto com os renascimentos daqueles que sobreviveram ao próprio naufrágio. Há algo de rito neste trabalho. Algo que purifica, absolve e devolve. O núcleo constrói uma experiência em que o fim é também retorno. Equipe afinada, texto poético e sensível, elenco preciso, cenários e figurinos bem elaborados, música bem executada e uma direção delicada na condução dos afetos.

Experimento III do grupo N7 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Núcleo 8 – Entre o Silêncio e Saigon

Fechando o ciclo, “Entre o Silêncio e Saigon” se equilibra entre mundos estilhaçados. Uma árvore antiga, guardiã de memórias, observa cinco personagens transitarem entre o agora e o outrora, entre a solidão e Saigon, entre perda e continuidade. O pano que divide os mundos não separa, apenas evidencia o contraste dos gestos. Quando a ameaça de destruição da árvore se impõe, os corpos se movem na direção do que os une. A peça é lamento e súplica, mas também manifesto. Talvez a vida só se sustente quando é tecida em coletivo. O núcleo faz da árvore um altar de passagem, raiz e ponte. Houve escuta no processo, e o trabalho final é enxuto, afinado e comovente. Bonito ver o coletivo se reinventando.

Experimento III do grupo N8 Vermelho, do segundo semestre de 2025, na SP Escola de Teatro. | Foto: Clara Silva.

Epílogo

Ao fim do Módulo Vermelho, o que permanece é a marca do embate. Os conflitos não se resolveram. E nem deveriam. Eles abriram fendas, deslocaram certezas, incendiaram perguntas. As cenas criadas não buscaram conforto, mas fricção. Não ofereceram respostas, mas tensão viva. Cada núcleo atravessou à sua maneira o risco de existir em confronto com o mundo, com o outro, consigo. Encerramos este ciclo com o corpo ainda aquecido. Porque tudo o que é verdadeiramente vermelho não termina em apaziguamento, mas em potência.

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