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Nydia Lícia: um rosto a reverberar tantas histórias, memórias e gentes

Publicado em: 02/10/2017 |

Bob Sousa, São Paulo, 2013

“O fotógrafo é um espelho com memória.” Esta frase do fotógrafo e grande parceiro na arte de retratar pessoas Márcio Scavone – que já tive a sorte de retratar -, presentifica-se, de modo mais intenso, em minha memória ao recordar de alguns retratos que tive a felicidade de fazer.

Um dos retratos que sempre tive o maior interesse em realizar foi o da atriz Nydia Licia, figura fundamental na história do teatro paulistano e brasileiro, cuja trajetória iniciou-se no lendário Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A atriz estreou no teatro, em 1947, no Grupo de Teatro Experimental (GTE), no espetáculo “À Margem da Vida”, de Tennessee Williams, com direção de Alfredo Mesquita. No mesmo ano, volta aos palcos, com o Grupo Universitário de Teatro (GUT), em “O Baile dos Ladrões”, de Jean Anouilh, com direção de Décio de Almeida Prado. Por intermédio dos dois espetáculos de estreia, a sempre bela, discreta e elegante Nydia iniciava uma sólida carreira como atriz, diretora, professora e empresária teatral, cuja importância é inequívoca, sobretudo à arte de representar.

Pela importância da artista, eu – um aficionado por teatro –, nutria um desejo intenso de conhecê-la, retratá-la e saber um pouco mais sobre o grande e mais importante fotógrafo de sua geração: Fredi Kleemann. Na condição de formador da fotografia teatral, queria que Kleemann me fosse trazido por Nydia: espécie de retrato fonético, cuja imagem se posporia à dela!

A foto faria parte de uma série de retratos que formariam o livro “Retratos do Teatro” (2013), Editora Unesp, cujo principal intento buscava criar um panorama da cena teatral paulistana, que contou com a curadoria do professor e pesquisador Alexandre Mate. Ao ler o nome da atriz na lista, elaborada pelo professor, passei a contar os minutos para estar diante de Nydia Licia.

Como quem iria assistir a um grande espetáculo, fomos à casa de Nydia: eu, a produtora Laura Salerno e meu filho Pedro. Pedro, na condição de parceiro e cúmplice de algumas aventuras fotográficas, auxiliar-me-ia a relembrar permanentemente aquela história. Para o professor Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes, toda memória é social e pressupõe interlocução entre os “atores” que detêm determinada lembrança.

Ao tocar a campainha e ouvir a voz da atriz, que solicitava que a aguardássemos um pouco, espantado, e com nove anos, então, Pedro disse: – É ela? Parece que já estamos numa peça.

A sessão de fotos transcorreu lindamente, e Nydia, com toda a sua experiência e carisma, foi narrando um pouco da história da sua vida, imbricada à sua carreira, sobretudo no TBC. Ao falar sobre o amigo e parceiro Fredi Kleemann, a atriz emocionou-se intensamente, mas ficou extremamente feliz ao saber que seu trabalho ainda ecoava para uma geração tão distante daquela vivida no início da segunda metade do século XX.

Outro relato impressionante ocorreu quando Nydia relembrou de outra grande atriz do teatro brasileiro: Cleyde Yáconis. De certa forma, Nydia foi uma das “responsáveis” pela estreia de Cleyde, que a substituiu, em 1950, no espetáculo “O anjo de pedra”, de T. Williams, interpretando a sensual personagem de Rosa Gonzales. A montagem foi um dos grandes sucessos do TBC, e foi dirigida pelo italiano Luciano Salce, tendo como assistente o importantíssimo ator Sérgio Cardoso, então marido de Nydia Licia.

A amizade entre as duas permaneceu pelo tempo de vida de ambas. Nydia se propôs a nos ajudar a realizar o retrato de Cleyde, o que não ocorreu em razão de a atriz encontrar-se com a saúde bastante frágil naquele momento.

De qualquer modo, ao se olhar o retrato de Nydia, com alguma atenção e afeto, poderá divisar-se nele: Fredis, Cleydes, Sérgios, Décios…. Um imenso coro de gentes fulgura no rosto iluminado da grande e inesquecível atriz.