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Visões, assassinatos, dores e política dentro de um corpo desviante

Publicado em: 27/02/2018 |

MAURÍCIO PARONI

Especial para a SP Escola de Teatro
Chá e Cadernos 100.7

I. Visão em primeira pessoa

A elaboração de uma visão pessoal sobre corpos desviantes e arte não pode que começar com o fato de, por ser artista, necessitar desta escola, estética ou de pensamento: ser obrigado a estar no mundo num corpo desviante, faz-me jamais deixar de ser um aprendiz. Porque foi terrível a progressão para a existência num corpo desviante dentro do qual não me preparei para viver. Contrariamente, foi enorme a alegria de aprender a viver nesse corpo quando a existência já me parecia concluída e tudo já trazia aquela sensação horrorosa de espetáculo estreado para sessões teatrais sem criatividade, burocraticamente estéreis.

Mas, por três vezes, o silencio da morte apresentou-se para um cafezinho gelado. Autoritário, traçou o caminho para um aprendiz adulto, sem frescuras ou muletas ideológicas: continuar de cadeira de rodas num corpo que se reescreve por deslocamentos complementares.

Tais deslocamentos são a união e a derrota da separação entre o corpo e a mente. Sou portador de esclerose múltipla. Essa doença traz frequentes períodos de tempo em que há dores fortes em muitas partes do corpo. Mas não são dores ”reais”, embora sejam concretas. A concretude vem da imprecisa transmissão de impulsos nervosos entre os neurônios. Ê uma dor mental, somente mental. Dói uma perna, muito, mas não há qualquer lesão nela; as há no receptor de suas sensações.

Vem disso a minha convicção de que a arte se dá na mente do narratário, do espectador, do ouvinte, do fruidor da obra. Não de um fato somente intelectual. Muitos artistas de artes performáticas creem-se obras de arte em si. São um disparador concreto, mas a percepção do receptor é de concretude muito maior. Mente e corpo são um desvio de si mesmos. Graças a um desvio corporal, Arte e existência viraram uma só gramatica perceptiva para mim. São senhoras do destino qual Édipos da fatal encruzilhada onde se assassina o pai.

II. Visão em terceira pessoa

Depois do fim do regime militar, a partir dos anos 80, um ítalo-brasileiro trabalhou exaustivamente para tornar-se um diretor. Conseguiu estabelecer, em Milão, uma estética própria, um artesanato de palco firme e técnico. Experimentava uma existência relativamente equilibrada. Viajou o mundo dirigindo espetáculos.

Seu corpo era cúmplice dessa estabilidade. De tipo branco-europeu, tinha consistente cultura musical, coreográfica e ia bem em alguns esportes marciais. Raramente visitava o medico. Passou quase vinte anos sem precisar ir a um hospital.

De um momento ao outro, manifestou o que mais tarde foi diagnosticado como esclerose múltipla progressiva, com esporádicas exacerbações que o hospitalizavam. Ficou temporariamente cego numa delas. Em três anos, desenvolveu um agressivo tumor no mediastino. Quase morreu. Em dois anos, estava numa cadeira de rodas. As complicações das forte cura quimioterápica fizeram-no dialogar concretamente com a morte. Produziu-se um sentido inverso ao corpo “ideal”: um corpo desviante.

A evidente dificuldade física obrigou-o a reinventar a sua mente através da visão do mundo que dela própria nasceu. A começar pela cadeira de rodas como um Dolly cinematográfico que fez os rostos de quem diante se lhe apresentava serem primeiro os genitais, posterior ou anterior. A menos que o interlocutor postasse-se à mesma altura, qualquer conversação estabelecia-se de baixo para cima. Muitas pessoas dirigiam-se ao eventual acompanhante; jamais diretamente a “ele”. Virou uma terceira pessoa, atribuível a medos, neuroses, preconceitos, fetiches, teorias e religiosidades taumatúrgicas. Qualquer deslocamento devia ser programado.

A nova condição não o alijou do teatro. Virou quase mais um ator, apesar de continuar a dirigir. Começou a escrever para cinema também.

Não escreveu sobre a doença, senão sobre o caminho mais rápido e menos ilusório da existência: a morte. Ou, como veem os mexicanos, uma metáfora da vida. O novo corpo trouxe-lhe uma visão de mundo paradoxalmente apreendida por sinapses de primeira infância em plena andropausa. A questão do gênero e da sexualidade como linguagem metafórica existencial passou a ser central. E, porque não, politica.

III. Visão em discurso livre indireto

Do existencial “puro” à crise ”politica”: Na sequencia cinematográfica deste curto roteiro, um corpo perdeu-se, desviou-se e emitiu um monologo(*). Aos poucos, o discurso existencial insere-se na ironia politica.

Interno. Noite. Um ator [que presenciou o assassinato do diretor de seu próprio filme num plano sequencia anterior] porta um velho capacete britânico dos anos 20. Em primeiríssimo estático, o único movimento que se percebe é o de seus olhos, que ouvem e dançam seu próprio pensamento. A sua suposta mente rege o não-movimento do quadro. Vindos de um radio, soam hinos patrióticos britânicos.

“Chamar-lhe de esposa traz carga imerecida ao eu de ninguém, muito menos ao teu e ao meu – Vejo que não se muda o que no fundo se deseja – mesmo desejando outro caminho… Ou não se cumprem ações para tal fim. As ações da esposa acabam em outra seara daquela que corresponde ao meu desejo. A casa com filhos e problemas são entregues à mulher, que os resolve sem que aqueles tenham a chance de resolve-los. A culpa por não resolve-los, mas faze-lo em lugar de – ajudar sem ajudar. A aspiração à liberdade, o sedimento acomodado ao ciúme, à insegurança, à raiva… A vida com o objetivo da tranquilidade… Numa determinada idade chega a renuncia ao sexo, a insegurança patrimonial, a arrependimento dos atos passados… o rock, o naturismo, o pouco estudo, as adversidades econômicas e sociais, os respeitos prestados a cafajestes que não mereciam senão a morte; A boa mesa, a saúde que se esvai com a velhice, o então-vamos-descansar-ir-ao-cinema-ao teatro-ou-socar-se-no-sofá-diante-da-televisão… o estar-com-artista-que-não-sabe-o-sabor-das-benesses-acima-elencadas… “Silencio. A mente o leva a uma agressividade proibida. “Ainda mais, o estupido supera, ostensivamente, sérios problemas de saúde com a minha ajuda; tende a um autoritarismo de apaixonante fim altruístico, como toda arte digna do nome… Que trabalho, que canseira que dá… Mas não tomo qualquer iniciativa; afinal, todo artista se curva. Mas haverá o momento em que ele não se curvará. Pensa… tem treinado um escravo fetichista japonês para me servir sem sexo, porque não quero mais saber disso na menopausa, muito menos com gente oriental – Não quero separar sexo de afeto… Então… esse louco esta arrumando até uma escrava para acalmar a libido japonês – o qual poderá somente servir-nos taças de prosecco sem levantar os olhos. Poderei, portanto, ser quem eu quer: pessimista e sem compromisso. E assim esse chato arrogante de marido não me enche mais o saco e me deixa em paz sem me largar. Nada de sofrimentos, visto que nos amamos. Estranhas paragens… Comecei este monologo como um marido e terminei como uma esposa. Não sei mais o que é o meu eu ou o que foi feito de meu corpo. Talvez deva estar respirando, ainda, no bosque dos eus penados. ”O ator sai do quadro.”

IV. Uma quarta visão.

Houve quem disse que escrever sobre o próprio corpo requer coragem… Coragem ou covardia… Não tenho saída, pois um corpo desviante não pode esconder seus próprios desvios. Trata-se, em si, de uma definição clara sobre a inutilidade da dicotomia verdade-mentira. De uma das possíveis definições na arte performática. De uma definição sem equívocos da própria existência. Não se pode esconder que se está vivo. Não se pode esconder que se está morto.

(*) filmadas com o ator Fabio Gonzales.

Anatomia Leonardo Da Vinci

Anatomia Leonardo Da Vinci