EN | ES

Teatro, cidade, memória

Publicado em: 02/05/2016 |

Quando o campo das artes dialoga com a cidade, em tempos bicudos como o que vivemos, o resultado pode ser reflexão relevante. Assim ocorre com “Entre Vãos”, montagem do coletivo teatral “A Digna em parceria com o grupo “Um Cafofo”, em temporada até o dia 20 de junho. Com direção de Luiz Fernando Marques e dramaturgia de Victor Nóvoa, a experiência equivale a entrar num filme de Eduardo Coutinho – e ficar preso ali dentro.

Explorando alguns temas comuns aos do cineasta morto em 2014, a pesquisa de “Entre Vãos” parte do extinto Edifício São Vito para ressuscitar de seus escombros pequenas tramas. Como um teatro/arqueologia, o espetáculo encontra, hibernando nas ruínas, histórias com sede de liberdade, aguardando alguém que as escute.

Nesse “levantamento de recalque”, o coletivo faz São Paulo falar, através das pequenas grandes tragédias dos personagens que a habitam. E, nesse sentido, se converte numa espécie de operação de cura: como nas primeiras teorias de Freud, nascidas da escuta das histéricas, o trauma esquecido e soterrado, quando encontrado e recordado, faz cessar os sintomas patológicos. Seria também assim com as marcas da cidade? Elas têm o que dizer?




“Entre Vãos” se compõe de três peças itinerantes e entrelaçadas, que se passam fora dos espaços convencionais do teatro comercial. Todas elas transitam nas fronteiras da ficção e da realidade. Todas elas são pesquisa de linguagem. Todas elas buscam devolver à rua a ideia de circulação. Todas elas jogam com as noções embaralhadas de público e de privado. Todas elas têm implícito o gesto político de reconstrução da cidade. Todas elas remetem a Eduardo Coutinho, naquilo que ele tem de melhor!

“Anjo de Corredor” é uma das três encenações. Nela identificamos uma inquietante atualidade: estamos em 1984, nas Diretas-já! E o tema da memória se impõe de maneira engenhosa, incluindo simultaneamente o pessoal e o coletivo. Cidade e individuo. O apagamento da história pode se dar nesses dois níveis, e em qualquer caso é cruel e, numa palavra, desumanizante.

Encontramos a personagem Anjo do Corredor, vivida com garra e graça por Helena Cardoso, congelada no tempo. Há uma traiçoeira paz doméstica pairando no ar, da qual o espectador não desconfia. Estamos prestes, entretanto, a assistir ao derretimento de ilusões. A assunção pela personagem de uma repentina lucidez (mesmo que provisória e relativa) é instante comovente e iluminado da dramaturgia paulistana.

Ali, o coletivo consegue a proeza de inverter equações caras ao teatro: na entrada da segunda personagem, Walkyria Ferraz (vivida por Ana Vitória Bella), a ideia de “suspensão da descrença” é visceralmente interrogada. Explico.

Walkyria Ferraz aparece na metade da peça como um choque de realidade, arrancando a plateia do conforto de uma visita vespertina. A violência do impacto dessa chegada afeta o espetáculo de maneiras diferentes: se, por um lado, obriga Anjo do Corredor a despertar de seu crônico devaneio, de outro, mergulha os espectadores – sem que eles se deem conta – no grau máximo de hipnose, num momento altamente catártico, de que só o bom teatro é capaz de produzir.

Enquanto Anjo começa a duvidar de sua ficção; a platéia desprevenida, a partir daí, acredita piamente na peça. Credulidade!

Sobretudo porque, ali, não há distância: estamos in loco, enfiados no conflito, sem saída, no fogo cruzado de paixões. Somos queimados por esse fogo, apelo de humanidade.

Noutro sentido, o espectador paga um preço por seu voyeurismo. Perto demais da cena, é atingido em cheio pelo trauma.

Eis a catarse, ficção cara a Freud da pré-psicanálise. E cara ao Teatro de priscas eras; eficaz ainda hoje – mesmo no teatro experimental, alternativo e “pobre” (tão rico!) – conforme nos revela essa empreitada de Digna e Cafofo.

Depois desse Satori do avesso, a plateia atordoada é lançada novamente no espaço coletivo. Desamparadamente. Conduzidos por Anjo do Corredor (que, de fato, teve por função histórica guiar os moradores do antigo Edifício São Vito pelo escuro de seus corredores), os espectadores são levados ao fim da história: ao centro da cidade, coração de São Paulo. Começo de outra coisa.

 

Ficha técnica:

Direção: Luiz Fernando Marques  | Diretor assistente: Paulo Arcuri | Dramaturgia: Victor Nóvoa | Elenco: Ana Vitória Bella, Helena Cardoso, Laís Marques e Plinio Soares | Concepção: A Digna e Um Cafofo

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]