MAURÍCIO PARONI
Especial para a SP Escola de Teatro
Chá e Cadernos 100.3
“Devemos”, “temos que”, “o correto é” são expressões da despauperização valorativa em curso na sociedade contemporânea que podem – não “devem” – ser evitadas no pensamento de qualquer artista intencionado a construir uma cultura de liberdade. Isso requer um esforço intelectual enorme. Requer estudo, disciplina, abertura mental e informação para poder dispor de instrumentos de reflexão sem cair na preguiça ideológica do slogan.
Há impossibilidade em sabermos quem somos na arte. Já é difícil sabermos quem somos no mundo; podemos ser através da arte porque esta é uma funcionalidade antes de ser uma expressão.
A proposito: o que é e o que não é arte, hoje, nem Marcel Duchamp (1887-1968) sabia. Dadaísta assertivo, empregou tal duvida para reinventá-la através do conceito. Quer dizer, a arte ocorre na mente de quem a desfruta, não ocorre no objeto a ser desfrutado. Por um lado, ativou a discussão da arte como o instrumento fundamental do artista no âmbito acadêmico e produtivo; por outro, possibilitou especulações espúrias e mediocridade artesanal.
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Há, conectado a esse ultimo aspecto, uma preocupante falácia ocorrida no noticiário da mobilização para a censura à Exposição no MAM que supostamente promoveria a pedofilia sob a legitimação da arte. Instilou-se uma discussão desse como sendo ou não arte o acobertamento de um grave crime. Trata-se da armadilha política predileta da mentalidade autoritária do atraso, sempre em curso. É a base da sofisticação da censura – “de direita” ou “de esquerda”.
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No período militar da ditadura, levavam-se textos, projetos e afins para as sedes regionais da censura oficial do regime. Lembro-me bem. Ali, uma besta escolhida a dedo apagava arbitrariamente, o que havia a se censurar segundo o seu senso comum.
O cineasta Luis Buñuel (1900-1983) sugere que uma ditadura jamais acaba quando se a sofistica sob aparência de democracia. A liberdade seria um fantasma; uma quimera pela qual vale a pena lutar porque nisso reside o seu valor e sentido: nela acreditar. Por lógica, acreditar na cultura faz florescer o desejo que alimenta a liberdade.
Será sempre inócuo brandir as bandeiras de dogmas ou receituários neoliberais, comunistas, coxinhas, mortadelas, brancas, pretas, vermelhas, amarelas, deficientes, perfeitas, naturais, industriais, orgânicas. Em suma, infinitas fogueiras terminológicas de slogans e “marketagens”. Nessa ardente imprecisão reside a falência de qualquer projeto de nação porque a sua linguagem fundadora, feita de aproximação conceitual, torna impossível um desenho claro de civilização. Ergo, um projeto à deriva no mundo das construções fantasmagóricas da contemporaneidade.
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As interpretações que corroboram a autocensura via temor de linchamento pela massa cibernética anônima fazem inveja ao ISIS e àquele censor militar bestificado.
Chegou-se a uma sociedade onde um individuo teme ficar a sós com outro individuo – até um vadio cãozinho pode ser lido e denunciado como um assediador de direitos se latir de maneira suspeita num elevador desprovido de câmera. Concretude conceitualmente possível, realidade surreal sem ser arte surrealista, vive-se a banalização da agressividade destruidora do próprio direito de não ser assediado.
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Décadas atrás, esse bonde foi puxado pelas locomotivas ideológicas de Hitler, Stalin, Mussolini, Hiroito, Pol Pot. Quem, hoje, fizer-se de cego para tomar o mesmo bonde, vai viajar puxado por Trump, Bolsonaro, Jihadi John, Bin Laden, Kim Jong Il, Putin e demais picaretas. Mesmo que seja num inocente – ma non troppo – debate de facebook, a propulsão é nuclear.
O papel da Cultura é – pode ser – fundamental para o aperfeiçoamento institucional de nossa sociedade em desagregação civilizatória; e para o discernimento entre bom senso e senso comum. Basta o pequeno esforço de ler o letreiro antes de tomar o bonde indesejá-vel.