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Dever ou Poder

Publicado em: 10/10/2017 |

American, 1917–2009 – Marcel Duchamp, New York, April 30, 1948, printed 1984

 

Marcel Duchamp. Duchamp playing chess with Eve Babitz. 1963

Alfred Stieglitz, “The Fountain” (“A Fonte”), Marcel Duchamp, 1917

MAURÍCIO PARONI
Especial para a SP Escola de Teatro
Chá e Cadernos 100.3

 

“Devemos”, “temos que”, “o correto é” são expressões da despauperização valorativa em curso na sociedade contemporânea que podem – não “devem” – ser evitadas no pensamento de qualquer artista intencionado a construir uma cultura de liberdade. Isso requer um esforço intelectual enorme. Requer estudo, disciplina, abertura mental e informação para poder dispor de instrumentos de reflexão sem cair na preguiça ideológica do slogan.

 

Há impossibilidade em sabermos quem somos na arte. Já é difícil sabermos quem somos no mundo; podemos ser através da arte porque esta é uma funcionalidade antes de ser uma expressão.

 

A proposito: o que é e o que não é arte, hoje, nem Marcel Duchamp (1887-1968) sabia. Dadaísta assertivo, empregou tal duvida para reinventá-la através do conceito. Quer dizer, a arte ocorre na mente de quem a desfruta, não ocorre no objeto a ser desfrutado. Por um lado, ativou a discussão da arte como o instrumento fundamental do artista no âmbito acadêmico e produtivo; por outro, possibilitou especulações espúrias e mediocridade artesanal.

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Há, conectado a esse ultimo aspecto, uma preocupante falácia ocorrida no noticiário da mobilização para a censura à Exposição no MAM que supostamente promoveria a pedofilia sob a legitimação da arte. Instilou-se uma discussão desse como sendo ou não arte o acobertamento de um grave crime. Trata-se da armadilha política predileta da mentalidade autoritária do atraso, sempre em curso. É a base da sofisticação da censura – “de direita” ou “de esquerda”.

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No período militar da ditadura, levavam-se textos, projetos e afins para as sedes regionais da censura oficial do regime. Lembro-me bem. Ali, uma besta escolhida a dedo apagava arbitrariamente, o que havia a se censurar segundo o seu senso comum.

 

O cineasta Luis Buñuel (1900-1983) sugere que uma ditadura jamais acaba quando se a sofistica sob aparência de democracia. A liberdade seria um fantasma; uma quimera pela qual vale a pena lutar porque nisso reside o seu valor e sentido: nela acreditar. Por lógica, acreditar na cultura faz florescer o desejo que alimenta a liberdade.

 

Será sempre inócuo brandir as bandeiras de dogmas ou receituários neoliberais, comunistas, coxinhas, mortadelas, brancas, pretas, vermelhas, amarelas, deficientes, perfeitas, naturais, industriais, orgânicas. Em suma, infinitas fogueiras terminológicas de slogans e “marketagens”. Nessa ardente imprecisão reside a falência de qualquer projeto de nação porque a sua linguagem fundadora, feita de aproximação conceitual, torna impossível um desenho claro de civilização. Ergo, um projeto à deriva no mundo das construções fantasmagóricas da contemporaneidade.

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As interpretações que corroboram a autocensura via temor de linchamento pela massa cibernética anônima fazem inveja ao ISIS e àquele censor militar bestificado.

Chegou-se  a uma sociedade onde um individuo teme ficar a sós com outro individuo – até um vadio cãozinho pode ser lido e denunciado como um assediador de direitos se latir de maneira suspeita num elevador desprovido de câmera. Concretude conceitualmente possível, realidade  surreal sem ser arte surrealista, vive-se a banalização da agressividade destruidora do próprio direito de não ser assediado.

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Décadas atrás, esse bonde foi puxado pelas locomotivas ideológicas de Hitler, Stalin, Mussolini, Hiroito, Pol Pot. Quem, hoje,  fizer-se de cego para tomar o mesmo bonde, vai viajar puxado por Trump, Bolsonaro, Jihadi John, Bin Laden, Kim Jong Il, Putin e demais picaretas.  Mesmo que seja num inocente – ma non troppo – debate de facebook, a propulsão é nuclear.

 

O papel da Cultura é – pode ser –  fundamental para o aperfeiçoamento institucional de nossa sociedade em desagregação civilizatória; e para o discernimento entre bom senso e senso comum. Basta o pequeno esforço de ler o letreiro antes de tomar o bonde indesejá-vel.