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Clichê e linguagem

Publicado em: 02/10/2016 |

i – Silvio Santos quase foi candidato à Presidência da República em 1989. Há 27 anos, eu pensava ingenuamente que alguém com tanta notoriedade não teria dificuldades de angariar infinitos votos. Mas ele mesmo desistiu antes do pleito. Embora estivéssemos longe do paraíso, talvez houvesse ali uma separação entre o fazer político e o fazer midiático. Não se acreditou que Silvio Santos venceria – e essa teria sido a razão de sua desistência. E hoje, ele seria eleito?

De lá pra cá, mais ainda, visibilidade – e não ideias – parece ter se tornado o ingrediente decisivo para tornar alguém elegível. Claro que sempre houve candidatos “profissionais” da política sem projeto. Não é necessário ser especialista em sedução para iludir plateias. De mais a mais, métodos torpes de convencimento existem há séculos. Comprar fidelidades foi expediente já desde quando os descobridores aqui chegaram – e deram espelhinhos aos índios. A propósito, veja-se o feliz haicai de Luiz Fernando Veríssimo para a palavra “descobrimento”: “Tu – piniquim; eu – ropeu”!

Um nome com chances de eleição nem sempre supôs, infelizmente, ter projetos e ideias de governo. Entretanto, essa desidratação do pensamento, incrementou-se nos dias que correm. Ou não?

No recente sufrágio municipal, muitos – que nem tinham Haddad como candidato – lamentaram a ausência de um segundo turno aqui em São Paulo. Mesmo que Doria ganhasse, o hiato entre o primeiro turno e o segundo daria a oportunidade de se pensar plataformas, planos, projetos, ideias, prioridades, métodos…

Com o sucesso atual do candidato Trump à presidência dos Estados Unidos – que neste momento tende a não vingar, oxalá! –, o fenômeno da hipnose de massas pede reflexão.

ii – Em 2001, num ciclo de debates sobre o silêncio, no SESC Belenzinho, o historiador Nicolau Sevcenko, a certa altura, gritou: “o que Gisele Bündchen tem que eu não tenho?!”. O público riu da pergunta. E ele mesmo respondeu: “Visibilidade!”.

Grito antecipatório, o de Sevcenko, anterior à existência do Facebook (criado em 2004) – em que a exibição de qualquer fiapo, mesmo oco e sem conteúdo, pode “viralizar” (palavra que o léxico incorporou recentemente). Novos tempos, novos ventos.

iii – Compartilhar experiências, antes mesmo que elas tenham sido vividas, é fenômeno recente. E preocupante, por dois motivos, entre outros: a) por abortar um pensamento que não está formado; e b) por abolir o segredo.

Primeiro. Talvez seja esse o aborto a ser combatido. O do pensamento não formado. Claro, numa democracia, cada um posta o que quiser. Mas, por exemplo, precisamos saber quantas vezes o intestino de um internauta funcionou?

No nível mais rente do puro relato, as comunicações não chegam a ter espessura de narrativas. Fato que remete a alguns pacientes da clínica psicanalítica que não conseguem decolar: sem recursos para autoconsulta, vomitam clichês.

Clichê é frase massificada. Fragmento cristalizado com o qual uma pessoa se identifica – e se funde, sem intervalo ou mediação. E rumina e regurgita e cospe.

Pertencer a um grupo é uma das motivações que levam à adesão cega ao lugar-comum. O importante é fazer parte rapidamente e ter uma turma e abraçar uma causa com convicção.

De outro lado, problematizar e refletir são operações caras. Pois elas supõem: a) recortar-se da massa; b) afirmar singularidades; c) aguardar; d) suportar fazer interrogações para as quais não se tem resposta; e) sustentar dúvida.

Convicção é, portanto, o termo a ser interrogado – pois ele só vale se tiver nascido de questionamentos: só vale se surgir de uma discórdia no interior do sujeito que interroga. Nesse sentido, diz o manifesto antropofágico, de 1928: é preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à ideia de deus.

iv – A frase de um internauta de São Francisco, Califórnia, área de abalos sísmicos, é bastante atual. Publicou ele, numa rede social, há alguns anos: in case of earthquake, leave the building before posting. Em caso de terremoto, saia do prédio antes de postar.

Além do risco de vida, a compulsão a compartilhar produz uma multidão que diz o que considera interessante que se diga. Tendo perdido a noção daquilo que penso, só me resta postar buquês de chavões! São roupas com as quais me fantasio, figurinos da minha performance. Uniformes!

De outro lado, descobrir o que se pensa dá trabalho – e exige um tempo de engorda e a articulação de fiapos soltos de ideias e pensamentos…

v – Além disso, em segundo lugar, exibir experiências, antes mesmo de tê-las vivido, é preocupante porque, em tempos de transparência compulsória, privacidade e segredo ficaram relegados a um plano secundário, de detalhe menor.

Disse um sábio húngaro: mulher que não guarda segredo não engravida! Gestar – criaturas e ideias – exige silêncio!

vi – O jargão, o clichê, os chavões, as frases-feitas, o lugar-comum, os estereótipos, os preconceitos (e as “pré-posições”) circulam caudalosos pelo mundo da linguagem, desenhando territórios, estabelecendo dialetos, oferecendo passaportes de pertinência.

Se de um lado, eles (os clichês) suprimem singularidades – pois almejam a unanimidade, o universal, as generalidades -, de outro são marca do espírito gregário dos humanos. São fruto de um acordo implícito.

Se de um lado, são expressão do pacto civilizatório que se dá entre membros de um grupo (grupo que fala uma mesma língua), de outro, em nome desse acordo, os clichês desestimulam a reflexão – pois já trazem todas as respostas – e se aproximam das paixões infantis (tirânicas), próprias dos fenômenos de massa.

vii – Banalização caminha no sentido inverso das produções no campo das artes. Interrogar o clichê – pra verificar se ali ainda há poesia – tem se mostrado, com frequência, nos palcos dos teatros, procedimento fecundo.

Numa experiência de desconstrução, devolve-se às palavras a sua propriedade não-unívoca, reconstituindo a multiplicidade de sentidos que elas transportam – e que o hábito, as anestesias e as hipnoses cuidaram de eliminar.

viii – Finalmente, aprendemos com Eduardo Galeano: “Ensinar é ensinar a duvidar”. Genial, contanto que não se transforme a frase, ela mesma, num clichê!

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]