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Vento!

Publicado em: 05/11/2014 |

I – Sotaque 

Por ser unívoco e não possuir ambiguidades, o clichê não tem valor expressivo. Ele pode, na melhor hipótese, comunicar algo, mas jamais expressa coisa nenhuma. O clichê vai de carona na linguagem – não apenas verbal, pois a linguagem não é feita unicamente de palavras…

Os clichês são depósitos calcificados que pasteurizam; resíduos que grudam, não só na língua, mas também no corpo.

Clichê é um tipo de sotaque: cada região social usa alguns e recusa outros. Cada boca emite a música que esteja de acordo com o grupo de onde é oriunda. Gramáticas desenhando uma geografia!

Os clichês vêm pregados na boca com clipes – serão eles os próprios clipes?!

II – Massa

Hoje, o destino não é mais determinado pelo berço: não se nasce fidalgo ou vassalo. Há mobilidade social – ela não é absoluta, mas é tremendamente maior do que já foi em outras épocas.

Se o berço não determina mais os destinos, é necessário adquirir urgentemente linguagem. Esse é o passaporte da contemporaneidade – ele nos faz subir ou descer degraus. Ele faz com que tenhamos acesso ou sejamos excluídos.

A língua – e o modo como a usamos – revela inúmeras coisas: origem social, ambições, limites, desejos, instrução, gosto estético, traço de caráter, nível cultural, preferências. Até eventualmente inclinações sexuais (eventualmente!)… Pelo discurso quase adivinhamos o desejo do falante…

A linguagem tem autonomia! Um poder impressionante, que desemboca na poesia, nos casos benignos, e nos populismos e nacionalismos, noutros casos… Ah!, a massa!

III – Epidemia!

As pessoas da cidade se dividem em tribos e adotam suas roupagens. Cada uma tem seu uniforme. O modo de vestir também é sotaque. É linguagem igualmente, e também deixa ver alguma coisa da pessoa por debaixo das camadas de próteses – que são (não totalmente) escolha do sujeito.

Até mesmo o corpo físico é – cada vez mais – uniforme: em certos grupos não se admite aquele que não tenha o corpo adestrado e uma forma pré-definida, inspirada aparentemente em modelos de plástico (com o peito de supino ou de silicone…). Lábios, pênis, seios, nádegas, nariz, orelhas, pálpebras… Nada escapa: é olhar na vitrine e escolher.

E os que recusam esse frankensteinismo do século XXI formam outro grupo – que também é um grupo (que fala com um sotaque peculiar que o caracteriza)!

E mesmo nas expressões linguageiras, a forma de se comunicar veicula as bengalas de nossos dias. Não está longe no tempo o “a nível de” (“vamos hoje trabalhar a nível de joelho”, dizia a professora de ginástica da academia); ou, mais recentemente, o gerundismo (“estarei passando a sua ligação ao supervisor”, diz a moça do telemarketing).

Por serem rotineiros, os estereótipos do cotidiano se infiltram sorrateiramente, se alastram, e são epidêmicos – sintoma da doença social.

IV – Público/privado

Por que doença social? Pois nossa “essência”, a matéria “humana” de que somos feitos, está longe da frase-feita. O chavão é vazio de sujeito. Estereotipias são fachada. As pessoas de carne e osso e alma estão nalgum compartimento desse edifício calcificado de clichês, cultivando solitariamente suas porções singulares, suas impressões digitais. Esperando que alguém lhes dê atenção. Que o olhar de alguém as recorte do lugar-comum.

Difícil construir intimidade numa época em que as narrativas estão exaustas, e a ordem é a de tornar tudo público: compartilhar experiências antes mesmo de tê-las vivido. Mas, cuidado: se não há segredo, não há gravidez!…

Diz Pedro Bruggemann, o pensador da cultura: as redes sociais são espaço para a ejaculação precoce de opiniões!

V – Couraça de caráter…

O inconsciente está no corpo. São as marcas de nossa história pessoal. Neste caso, a geografia é sensorial. Mas, ideias equivocadas que esvoaçam na atmosfera podem também pousar na pele como couraça, marcando os corpos – e se tornam facilmente preconceito.

Pior que o “pré-conceito”, segundo pregava José Ângelo Gaiarsa, é a “pré-posição”: um pensamento cronificado, incrustado no corpo e no gesto. Se eu, por exemplo, sou obrigado a compartilhar o elevador com alguém que classifico como habitando um andar inferior na escala social, modifico a respiração, numa reação física de desconforto. Sutil, essa resposta não é consciente.

A preposição é o mais físico dos preconceitos! Saiu da língua e do campo das ideias e introduziu-se no soma, atingindo finalmente os movimentos involuntários do cidadão.

“É preciso combater as ideias que se tornam pedras…”, poderia ser uma frase da semana modernista de 22!

VI – Rótulos

No manifesto antropofágico, lemos: “é preciso transformar tabu em totem”. Seria uma receita para dissolver “ideias-substância”? Depois disso, o quê? Implodiríamos os totens?! Ou então, interrogando de outro modo: para que deveríamos desejar dissolver os preconceitos, as preposições e as ideias minerais? Logo adiante, arrisco uma resposta.

Note-se que o preconceito é um modo de não entrar em contato com aquilo de que se tem fobia. O preconceito encapsula o que incomoda, deixando algo enquistado, por assim dizer, de maneira que há quem odeia aquilo que nem sequer conhece.

Preconceito é colocar um rótulo – para assim acreditarmo-nos dispensados de sentir o sabor. Pois experimentar dá trabalho!

VII – Invisibilidades

Na Psicanálise Húngara, fazer com que o paciente intensifique um gesto ou um sintoma é uma velha técnica de transformação, processo de redistribuição de energia psíquica. Em algumas escolas psicoterápicas posteriores, essa “exageração” foi recuperada e ganhou destaque. Exagerar para falar a verdade… Como em certos exames de laboratório, em que um contraste tem a função de tornar visíveis certos órgãos internos.

No teatro, exagerar é também técnica, um modo de levar o ator a encontrar o personagem: ele precisa perdê-lo para, no-só-depois, resgatá-lo em seu tamanho devido.

Exagerar é ainda ato político: tomando dos dias que correm conteúdos adormecidos no corpo e na língua (clichês sorrateiros e nefastos, preposições e preconceitos), as artes podem flagrar as estereotipias do cotidiano – intensificando-as – como numa ilustração. Ou como num outdoor. Uma caricatura. Um grito!

Essa operação é relevante na medida em que o preconceito exige muito do psiquismo. O alvo do preconceito é um objeto superinvestido de libido. Do ponto de vista econômico, o preconceito é um desperdício. Eis aqui um motivo para que desejemos dissolvê-lo. Livres do preconceito, seriamos leves e teríamos à disposição um oceano de reservas extras de energia para investir noutros projetos. Sustentabilidade!

Finalmente, intensificar um gesto é denúncia: dá a medida daquilo que, pelo hábito, tornou-se invisível. É pelo excesso, e não pela falta, que as coisas se ocultam de nós. Pela ubiquidade, muitos fenômenos nos passam despercebidos…

O gênio é aquele que enxerga e grita: o rei está nu!

Vice-versa, fazer segredo é a melhor forma de transmitir verdades (especialmente para as crianças – e os pais na maioria das vezes não sabem disso): o cofre sublinha exatamente aquilo que é para não ser visto, jogando ali um facho de luz.

Exagerar nas artes e no palco, em suma, revelando segredos e tornando visíveis nossas bengalas, aquelas que a gente usa sem nem perceber, pode nos fazer despertar das hipnoses coletivas nas quais estivemos mergulhados.

Não seria essa justamente uma das funções do campo das artes? Fazer com que o espectador saia transformado do espetáculo? Fazer com que ele seja um pouco menos igual a si mesmo depois da experiência? Fazer com que ele experimente a experiência?! Fazer enfim com que ele tenha trabalho?!

VIII – Vento…

Arte e Psicanálise são convites ao esvaziamento. Tentativa de transformar ideias-substância em vento. Recondução do sangue velho de volta a cabeceira do rio, caminho de salmão, rumo à nascente das coisas, lugar de desova, em que o peixe se purifica (fertiliza, transforma, fecunda). Hemodiálises…

IX – Pedra [antônimo de vento]

Claro, há limite para a metáfora e para a liberdade-borboleta. Há prisões que carregamos conosco. Frequentemente trocamos seis por meia dúzia. Trocamos de defesa. Trocamos de neurose. Trocamos de couraça. Trocamos de preconceito. Trocamos de gênero. Trocamos de sexualidade… E muitas vezes permanecemos no mesmo lugar.

Não somos invertebrados. Nem dotados de flexibilidade infinita. Depois de certa idade, inclusive, convém que tomemos cálcio logo pela manhã. Entretanto, nas experiências de inauguração a que o campo das artes convida, parece necessário um esvaziamento radical, varrendo os obstáculos que atravancam o caminho, milagre dos peixes.

Esse percurso nos leva em direção a uma origem, a uma gênese, a um recomeço. E aqui há uma prescrição de saúde embutida nas entrelinhas, espécie de lema: É preciso que sejamos vento!

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]

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