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Ruth Escobar por Lulu Librandi

Publicado em: 20/04/2012 |

Conheci Ruth Escobar nos anos 1970, em Paris, quando ela apresentava pelo mundo afora os “Autos Sacramentais”, sob a direção do argentino Victor Garcia. Ruth, que nunca foi atriz, mas tinha um instinto aguçado para aventuras em todos os sentidos, já era famosa por ter feito espetáculos que marcaram época. Num Brasil ainda tímido em relação a espetáculos de vanguarda. Era 1974, como eu morava em Roma, fui até Paris para me encontrar com uma grande amiga, a atriz Leina Krespi, que fazia parte do elenco e estava chegando com o espetáculo apresentado no Festival da Pérsia, patrocinado então pelo xá Reza Pavlevi, que governava o Irã naquela época. O diretor Victor Garcia fez um cenário espetacular, onde os atores, todos nus, representavam Calderón de la Barca dentro de um diafragma, como se fosse uma máquina fotográfica. Mas, uma pena, a empresa de engenharia que confeccionou o tal cenário, a Mills, não conseguiu fazê-lo funcionar. Resultado: os atores passaram a representar nus. O elenco tinha nomes como Leina Krespi, Sérgio Britto, Célia Helena, Carlos Augusto Strazzer, entre outros, a maioria já desaparecida hoje.

Mulher de uma grande energia, Ruth, o diretor e elenco decidiram participar de todos os festivais da Europa, como o famoso Festival d’Autonne de Paris, a Bienal de Veneza, além de uma temporada em Portugal. Ficaram mais ou menos uns seis meses viajando. Ruth, incansável, vinha ao Brasil e voltava mais ou menos com uma diferença de três a quatro dias. Haja energia! Por outro lado, ela também circulava pela Europa com uma companhia de capoeiristas da Bahia que fazia um sucesso extraordinário por onde passava.

Nessa mesma época, José Celso Martinez Corrêa, que havia sido preso sob alegação de usar drogas, ao ser liberado, foi levado por Ruth para um autoexílio em Portugal e Paris.

Ruth podia ter inúmeros defeitos, mas era muito solidária com sua classe, a teatral, naquela época tão unida em função de uma ditadura que censurava todos os espetáculos que consideravam ir contra os princípios dos militares. Assim, Ruth criou um movimento no Brasil e na França para libertar Rudá de Andrade, filho da Pagu e do Oswald de Andrade, que estava preso havia quase seis meses numa masmorra congelada pelo inverno no interior da França. Junto ao ex-presidente francês François Mitterrand e o ex-ministro Jack Lang, que era então diretor do Festival de Teatro de Nancy , Rudá, felizmente, foi libertado. A razão da prisão é que, ingenuamente ou não, levava cocaína dentro de um saco de café para alguém.

Ruth também engajou-se com Gerald Thomas, que trabalhava em Londres na Anistia Internacional, para tentar não só anistiar exilados brasileiros pelo mundo afora como acabar com a ditadura militar no Brasil.

Quando decidi voltar de Roma, que para mim era uma espécie de exílio, pois também estivera presa, Ruth foi ao meu encontro e logo me convidou para trabalhar no Festival Internacional de Teatro de São Paulo. Ela realizou três grandes edições. Trouxe as melhores companhias de teatro do mundo. A começar pelo grande diretor Robert Wilson, que, por sinal, está no momento se apresentando no Sesc de São Paulo.

O espetáculo que ele apresentou no Teatro Municipal entrou para a história. Durava 12 horas e o público não arredou o pé, passando a noite inteira no teatro. Era o “The Life and Times of Joseph Stalin”, que aqui recebeu o título de “The Life and Times of Dave Clark”, para evitar problemas com a censura.

E assim vinham companhias e atores da França , Itália, África, Estados Unidos, entre vários países. Belos tempos aqueles, apesar da ditadura. Todos os principais teatros ao mesmo tempo com belíssimos espetáculos. Não havia necessidade de ir à Nova York ou à Europa. O público prestigiava. São Paulo virava durante um mês uma grande festa. Os ônibus circulando no Bixiga, que era o centro teatral da cidade, cheio de artistas que se juntavam para jantar no Gigeto, Piolim, Anarelo. Com esses restaurantes, na verdade, Ruth conseguia o apoio na alimentação, assim como a hospedagem no Hotel Comodoro, do dr. Paulo Meimberg, na Avenida Duque de Caxias.

Quando terminava o festival, eu viajava imediatamente com a Ruth para a Paris, Roma, Nova York, para ela escolher os novos espetáculos para o próximo festival. Em Paris, a agente dela era madame Ninom Karvalis, na Espanha, Nuria Espert, e em Nova York, nada menos que Joseph Pappe, o rei dos espetáculos da Broadway, assim como da off Broadway. Teatro e musicais da época eram tão importantes e famosos como os Rolling Stones e os Beatles…

Hoje, o que temos no Brasil, ou melhor, em São Paulo, é uma infinidade de musicais e poucos teatros que exploram a palavra, o teatro de texto, o teatro de cenografias e grandes elencos. Temos monólogos ou duets em função dos altos custos e das dificuldades com o surgimento das famosas leis de incentivo, do tipo Rouanet,  ICMS e assim por diante. Uma pena. E nossos melhores atores estão todos trabalhando na televisão, onde os cachês falam mais alto.

Uma vez, assim que acabou um dos festivais,  Ruth inventou de trazer para São Paulo a show woman argentina Nacha Guevara, que vivia exilada no México.  A censura brasileira enlouqueceu e dizia para ela não vir. Como Nacha Guevara era seu nome artístico, Ruth driblou os milicos e a trouxe com seu nome verdadeiro.  E daí começamos, eu e Ruth, a peregrinar pela Polícia Federal, por Brasília, atrás do general Golbery do Couto e Silva, estrategista militar, poderoso, para que deixassem a Nacha fazer seu show. Uma apresentação sofisticadíssima, em que ela cantava músicas lindas de protestos dos cubanos e uruguaios famosos. Foi um sucesso extraordinário. Era ela e seu marido pianista em cena, onde ela, vestida de smoking, cantava e dançava. Uma maravilha. Trabalhei dois meses com eles e fiquei muito feliz com o bom gosto que era tudo aquilo.

Logo após Nacha Guevara, Ruth resolveu trazer a São Paulo o autor de teatro e escritor espanhol, que vivia há anos exilado em Paris, Fernando Arrabal.  A peça que ela escolheu para montar foi “Torre de Babel”. Como sempre, ela deixava os cenógrafos destruírem toda a caixa de seu teatro para abrigar cenários enormes, como havia acontecido em “O Balcão”, de Jean Genet. O cenógrafo era um de seus inúmeros maridos, que fez também “O Cemitério de Automóveis”, Wladimir Cardoso.

Na montagem da peça do Arrabal, eu, produtora executiva, lidava com o Luiz Carlos Ripper, grande cenógrafo, que morreu vítima da Aids e que fez uma maravilha: um terremoto no meio do espetáculo que durava mais de 5 minutos.  O texto não era lá grande coisa, mas tinha até um jegue, de verdade, em cena, e em todas as apresentações descia três lances de escada para chegar ao palco e, depois, subia os três andares para ficar tomando ar e fazendo suas necessidades na Rua dos Ingleses, onde fica o Teatro Ruth Escobar. E eu gritava a todos: “Nunca vi cavalo subir escadas!” Mas com Ruth tudo podia acontecer.

Ela tinha um excelente humor. Era divertida, berrava com todos, depois gargalhava. Tomava apenas café. Álcool jamais. Era destemida. Tinha pânico de ficar sem peruca na frente das pessoas. Uma vez, numa viagem a Paris, dividíamos o mesmo quarto e eu disse a ela da beleza em mostrar a careca. E ela me respondeu que, se morasse em Nova York, ela viveria sem peruca, mas num país medíocre e preconceituoso como o nosso ela não tinha coragem para tal. Uma vez, ela chegou a processar o Telmo Martino, colunista do Jornal da Tarde, que fez alusão a ela sobre a careca e a peruca. Ela ganhou o processo na justiça, mas pediu ao juiz que perdoasse a dívida que ele teria para com ela, pois sabia que jornalistas ganham pouco.

Ela me adorava, mas era tão competitiva e ciumenta que, às vezes, eu perdia a paciência e me afastava. Mas ela sempre voltava a me procurar e eu nunca neguei minha amizade a ela. Apenas dizia que seríamos grandes amigas, mas trabalhar com ela nunca mais. Era uma pauleira.

Ruth casou sete vezes, teve cinco filhos com três maridos diferentes. Tinha uma solidão existencial profunda. Me dizia que,  ao dormir, um lado da cabeça trabalhava e outro dormia. Ela não conseguia ficar quieta jamais.

Talvez porque teve uma infância sofrida na cidade do Porto, em Portugal, já que naquela época, ser filha de mãe solteira era um crime, foi muito maltratada, me dizia. Na verdade, venceu sozinha ao imigrar para o Brasil com 16 anos com a mãe. Moravam num quartinho da Mooca. Parece que cursou até o ginásio. Uma autodidata muito inteligente. Criou um jornalzinho para a colônia portuguesa, fez a volta ao mundo, entrevistando várias personalidades da época, como o Nasser, presidente do Egito, entre muitos outros. Quando ficou grávida, conseguiu um terreno com o governador Ademar de Barros e lá construiu os teatros que até hoje estão funcionando, bem ou mal, mas existem.

Adorava fazer reuniões, subversivas ou não, sobre políticas públicas para o teatro. Tudo isso juntando gente ou em jantares em sua casa ou no próprio teatro. Foi amiga de Cacilda Becker, Raul Cortez, Dina Sfat, Regina Duarte e outros, que a adoravam e sou testemunha disso.

Tinha fama de mal pagadora. Era pão-dura sim, mas nunca deixou de pagar às pessoas. Podia até demorar, mas sempre pagou. Ajudou com dinheiro várias personalidades do teatro. Recentemente, tirou Paulo Cesar Pereio da cadeia, que havia sido preso por não pagar pensão alimentícia. Foi dura com a Cissa Guimarães que o processou, pagou do dinheiro dela e soltou o Pereio. Ajudou muita gente, mesmo.

Hoje, vive sozinha e com Alzheimer, em sua casa no Pacaembu, onde vou sempre, e a vigio, para ver se as coisas estão bem, uma vez que foi interditada por uma das filhas e está sob judice.

Ganhou bastante dinheiro com o teatro. Tirou dinheiro de todos os políticos e mandatários desta república barata em que vivemos, onde os mesmos não estão nem aí para a cultura. Ela fez muito bem, pois hoje mais ninguém, a não ser o Danilo Miranda, do Sesc, traz gente famosa para cá. Vivemos numa pobreza triste e fria, sem nenhum controle e correndo e concorrendo nessas leis de incentivo.  Para onde o teatro e outras artes foram sendo empurrados… Neste País, atores, diretores, autores só vivem bem se estão na televisão.

O que resta dizer é saudades dela, que se autodenominava de generala e a mim de coronela, pois éramos duas tratorzonas.

LULU LIBRANDI (1944-2015) foi Produtora cultural. “E ainda amiga da Ruth Escobar, ainda que ela não me reconheça mais.”

 

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