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Ruth Escobar por Ivam Cabral

Publicado em: 20/04/2012 |

Ruth Escobar, a Construtora do Impossível

A única vez que vi Ruth Escobar em cena foi em 1990, no espetáculo “Relações Perigosas”, de Heiner Müller, com direção de Gabriel Villela. Lembro perfeitamente deste dia. Reunidos no mesmo espetáculo, um diretor que começava a fazer estardalhaço na cena daquele período, um dramaturgo que havia redefinido toda a estrutura dramatúrgica desde Beckett, e Ruth, um dos maiores nomes do teatro no Brasil.

No entanto, saí decepcionado com o que vira. Era um espetáculo muito estranho. Gabriel parecia não ter acertado mão e Ruth não estava à vontade em cena. Mas o tom da peça – e levei muitos anos para entender isso – era genial. Não só porque assistia, pela primeira vez, a um texto de Heiner Müller mas, e sobretudo, porque, embora vivendo “o tempo dos diretores” (neste momento, a voz soberana não era do ator, nem do dramaturgo), uma artista reconhecida buscava material de ponta para produzir uma montagem de risco.

Este “material de ponta” a que me refiro era o texto de um dos maiores autores daquele período e, importante contextualizar, Gabriel Villela, embora em início de carreira profissional, estava em alta; iria dirigir, neste mesmo período, Laura Cardoso em “Vem Buscar-Me que Ainda Sou Teu” e Regina Duarte em “A Vida É Sonho”.

E a genialidade de Ruth reside exatamente aí. Na precisão de sua intuição para desvendar novas possibilidades ao teatro. Fez isso a vida toda com maestria. Nos anos 1970, por exemplo, revelou para o Brasil – quiçá para o mundo – o jovem argentino Victor García que dirigiu, em seu espaço na Bela Vista, talvez o espetáculo mais emblemático da história do teatro brasileiro, “O Balcão”, de Jean Genet, em 1969.

Trabalhou com os maiores nomes da cena nacional, de José Renato a Antonio Abujamra, e produziu, em plena ditadura militar, o 1º Festival Internacional de Teatro, em 1974, onde o País pôde ver pela primeira vez o jovem Bob Wilson e o polêmico polonês Jerzy Grotowski, só para citar dois nomes.

Então, em 1990, quando vi Ruth pela primeira vez – e embora um tanto decepcionado com o resultado daquele “Relações Perigosas” – eu quis conversar com ela. Foi o Alberto Guzik quem passou seu telefone avisando que provavelmente ela não me recebesse com muita alegria, não. De qualquer forma, liguei pra ela e, para minha surpresa, me atendeu com a maior simpatia do mundo.

Marcamos um café no La Vilette – que na época funcionava na Avenida Angélica – e durante mais de três horas conversamos sobre teatro, ditadura, Portugal. Em nenhum momento desta conversa tocamos no assunto da peça que acabara de ver. Ficamos amigos.

Em 1992 fui viver em Portugal e nunca mais falei com Ruth. Certa vez, já em Lisboa, numa conversa com dona Maria Carlota Álvares Guerra, escritora e mãe da Maria do Céu Guerra, a maior atriz portuguesa de sempre, sou informado de que Ruth está em sua terra natal. E, coincidência das coincidências, vivendo em sua casa, vizinha à minha. Na época, eu morava na Bica, ao pé do Bairro Alto, e Ruth, próximo ao Largo de Santos. Entre nós, o Elevador da Bica.

Foi a dona Carlota quem contou à Ruth que eu estava vivendo lá e que passou a ela o meu telefone. Isso talvez tenha acontecido em 1994, 1995, não sei precisar. Nesse período, saímos muitas vezes, assistimos a inúmeras peças e tomamos muitos, muitos, cafezinhos na Brasileira.

Ruth voltou ao Brasil e, mais uma vez, perdemos o contato. Nos encontramos anos depois, em 2003, quando já estávamos na Praça Roosevelt e ela e José Arthur Giannotti apareceram para ver “A Filosofia na Alcova”, no Espaço dos Satyros. Mas Ruth não ficou até o fim da sessão. Me confessou, depois, que havia saído no meio da peça por causa do “cheiro do cocô”.

– Suporto tudo, mas cheiro de cocô, nunca.

Não tive coragem de dizer a minha amiga querida que o cocô era, na verdade, Danette, a sobremesa pobrezinha da Danone. Afinal, já tinha sido um luxo tê-la conosco em nosso teatro. E, confesso, fiquei embaraçado. Como explicar à produtora dos maiores escândalos do teatro brasileiro que a cena protagonizada por mim na obra de Sade era, na verdade, quase ingênua comparada a todas as suas loucuras contra militares e ditadura e sobrevivência cultural?

Ainda estive com ela em uma ou duas ocasiões, jantando em sua casa. Depois disso, nos falamos poucas vezes ao telefone, ensaiamos umas saídas e, quando soube de sua doença, desabei. Nessa fase, a enfermidade que a assolou também invadiu minha casa. Minha mãe desenvolveu Alzheimer e, durante alguns anos, fui me emocionando e sofrendo com a realidade do mal mais cruel.

E, com o maior amor e carinho do mundo, gostaria de deixar registrado que Ruth Escobar, além de tudo, fez parte da história dos Satyros. Foram dela as sugestões para duas peças de nosso repertório: “Divinas Palavras”, de Valle-Inclán, e “Hamlet-Machine”, de Heiner Müller. Mas hoje não é dia de falar sobre os Satyros. É dia de comemorar os 50 anos da chegada dessa portuguesa ao Brasil.

Meu aplauso mais sonoro para esta grande mulher que me mostrou que o teatro é o lugar do impossível.

 

IVAM CABRAL é ator, diretor e dramaturgo. É diretor executivo da SP Escola de Teatro.

 

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