EN | ES

Ruth Escobar por Carlos Hee

Publicado em: 20/04/2012 |

No final da década de 1960, o teatro em São Paulo estava em plena revolução. Nunca mais, em momento algum, os palcos dessa cidade foram tomados por montagens que, ao mesmo tempo, conseguiam se tornar o assunto de todas as conversas. O bairro do Bexiga abrigava as montagens de “Hair”, “Navalha na Carne”, “Roda Viva” e, um espetáculo jamais visto antes e que se tornou um marco na história não só do teatro brasileiro como do teatro mundial: “O Balcão”, de Jean Genet, sob a direção de Victor Garcia. Por trás de duas dessas grandes produções estava o nome de Ruth Escobar. Só seu modo de viver o teatro possibilitou a destruição de seu espaço teatral, na Rua dos Ingleses, para que o delírio de Genet ganhasse vida numa estrutura metálica que assustava o público num primeiro momento, para depois mergulhá-lo numa viagem fascinante.

Na época, eu não podia ainda assistir a nenhum desses espetáculos, todos proibidos para menores de 18 anos. E essa regra era levada a sério, principalmente porque vivíamos em tempos de regime militar de exceção, que pouco depois se tornaria ainda mais rigoroso com a edição do AI-5. Integrantes do Juizado de Menores permaneciam nas portas do teatro para impedir a entrada de menores. Mesmo assim, com documentos adulterados, alguns conseguiam driblar o cerco e assistir às peças consideradas “escandalosas”.  Para quem não imagina como funcionava a repressão, basta lembrar que os documentos eram inspecionados na compra dos ingressos e mais tarde na entrada do teatro.

Foi com uma carteira de estudante falsificada que eu consegui entrar para assistir a “O Balcão”. Além de ultrapassar a barreira dos policiais mal encarados, sentei exatamente na parte da plateia que, em determinado momento, se abria e nos transportava para um espetáculo inimaginável e inesquecível. Lá se vão mais de 40 anos e as imagens de “O Balcão” continuam vivas em minha memória, na insegurança de estar sentado na parede de um tubo gigantesco de metal vendo Ruth Escobar e Assunta Perez contracenando penduradas em trapézios a dezenas de metros do chão sem qualquer proteção – o que seria inadmissível nos dias de hoje.

Naquela noite, saí do Teatro Ruth Escobar com a decisão tomada que só havia um objetivo a ser perseguido: fazer parte daquilo tudo, ou seja, entrar para o teatro. Ruth Escobar, mesmo indiretamente, foi a responsável pela minha tomada de decisão. Era como se a atriz de “O Balcão” olhasse nos meus olhos, vestida de rainha do bordel,  e ao invés de Genet dissesse Drummond: “Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

A partir dessa noite mágica, Ruth Escobar cruzou várias vezes meu caminho. Não perdi mais nenhuma de suas produções, tornei-me assíduo frequentador de seu teatro, onde assisti à primeira apresentação dos Secos e Molhados, conheci Jean Genet e Fernando Arrabal pessoalmente e presenciei montagens memoráveis do teatro brasileiro e tantas outras do teatro internacional, nos festivais que Ruth trazia para São Paulo. Desde as 12 horas da peça de Bob Wilson, no Teatro Municipal, até o espanhol “Allias Serralonga”.

E fui ser gauche na vida, fazer teatro com Ulysses Cruz, o que me aproximou mais uma vez de Ruth Escobar, quase dez anos depois de a ver em cena pela primeira vez. Nas madrugadas de São Paulo, o bar do Hotel Eldorado, na Avenida São Luiz, tornara-se um ponto de encontro da classe teatral. Muitas vezes, deixávamos aquele café com o dia amanhecendo, depois de horas de conversa jogada fora em mesas que iam se juntando durante a noite. Nesses encontros, nós, jovens atores de um grupo teatral, dividíamos a mesa com Ademar Guerra, Oswaldo Mendes e Ruth Escobar. Com seu sotaque, ela passava horas conversando e bebíamos o que para nós eram ensinamentos preciosos. Histórias de Ruth e de Ademar Guerra, que naquele momento estavam envolvidos com a produção de “A Revista do Henfil”.

Nos anos 1980, o mundo começou a passar por outras mudanças, o País deixou de ser comandado pelos militares, Ruth entrou para a política e as madrugadas paulistanas também sofreram reflexos dessas alterações sociais. Deixei o palco para falar sobre o palco em jornais e revistas, deixei um universo fantástico para mergulhar na vida real. De agente passei a espectador e a acompanhar o fim de uma era em que Ruth Escobar dava as cartas. Fiz umas poucas entrevistas com ela, o que, para ser sincero, não era tarefa das mais fáceis. A Ruth da mesa formada por gente de teatro para a Ruth empresária era completamente diferente, e nem sempre agradável. Era ríspida e nada simpática. Mas cumpria seu papel, sem concessões.

A última vez que a vi, foi na estreia de Marília Gabriela em “Madame Macbeth”, faz poucos anos. A doença já mostrava seu efeito devastador e, acompanhada por uma de suas filhas, ela mal percebia o que acontecia em cena.  Mas ainda mantinha um ar soberano, com a inseparável peruca e seus óculos, que, dizia-se, era o que segurava o aplique em sua cabeça. Naquela plateia, infelizmente, pouca gente tinha conhecimento de sua importância e o quanto aquela mulher, que tinha de ser escorada para andar até chegar à sua poltrona, havia feito pelo teatro brasileiro.

 

Veja as outras homenagens a Ruth Escobar:

Com vocês, Ruth Escobar!

Ruth Escobar por Ivam Cabral

Ruth Escobar por Lulu Librandi

Ruth Escobar por Emilio Di Biasi

Relacionadas:

Uncategorised | 09/ 11/ 2023

Palestra com a artista sul-africana, Ntando Cele, acontece na SP Escola de Teatro nesta sexta (10)

SAIBA MAIS

Uncategorised | 20/ 09/ 2022

Pamy Rodrigues, artista egressa da SP, assina direção de espetáculo feminista inspirado no conto O Papel de Parede Amarelo

SAIBA MAIS

Uncategorised | 08/ 09/ 2022

Programa Oportunidades divulga lista final de contemplados da Bolsa-Oportunidade 2/2022

SAIBA MAIS