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Papo com Paroni | Renata Molinari, Thierry Salmon e a Arena Dramática: influência I

Publicado em: 14/04/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Dada a repercussão positiva de artigos em que relato experiências pessoais de palco, disponibilizo informalmente as principais influências que nortearam a construção e composição da poética que pratiquei na Itália, na Escócia, em Portugal e no Brasil. Serão artigos designados com a palavra “Influência” e foram publicados no livro “Aqui ninguém é inocente”, de minha autoria, em conjunto com Ziza Brisola(**), pela Alameda Editorial em 2006, que gentilmente libera a publicação aqui. O livro fez parte do projeto “Voltaire de Souza, o intelectual periférico”, patrocinado pelo Fomento no ano 2005.

 

Assumo o risco de parecer pedante, mas parece-me coisa útil descrever experiências  vividas  com algumas das mais lúcidas mentes do teatro  do final do século 20, no fim do período em que a ditadura militar brasileira depredou financeira e intelectualmente o nosso teatro. Principalmente devido a essa penosa situação, muitas personalidades citadas nunca – ou raramente – vieram ao Brasil. O contato de nossa cultura teatral com elas dependeu mais de artistas exilados ou radicados no exterior ou se deu exclusivamente através de livros e estudos universitários. Os verdadeiros dependentes da necessidade de troca artesanal, os atores, foram condenados ao isolamento. O inverso também é verdadeiro e o que se conhece do teatro brasileiro num universo dominado pelo eurocentrismo não faz senão que agravar essa triste realidade.

 

***

 

{Trabalhei com Renata Molinari depois de ensinar interpretação na escola de Arte Dramática de Milão, onde ela coordena o ensino de dramaturgia. Renata colaborou com Grotowski e Barba, e tornou-se uma dramaturg respeitada internacionalmente. Pioneira na Itália, introduziu a escritura cênica que vê o ator enquanto suporte da dramaturgia. Extremamente competente, foi o maior esteio de toda a maturidade artística do diretor belga Thierry Salmon.

 

Em 1986, ainda aluno da mesma escola, fui assistente e ator de Thierry, recém chegado na Itália depois da dissolução de sua companhia belga l’Ymagier Singulier. O seu último espetáculo, Fastes/Foules, dividia o espaço com lençóis pendurados em varais. O público também era assim dividido. As cortinas mudavam de lugar e criavam diferentes áreas de relação entre os atores e espectadores, entre os espectadores e outros espectadores e atores e outros atores, personagens ou não. Intimidades eram criadas e destruídas em um piscar de olhos, cenas eram interrompidas, voyeurismos eram estabelecidos, era infinita a promiscuidade.

 

Seu primeiro trabalho na Itália foi inspirado em Marguerite Duras, “A. de Agatha”: O público fungia de real voyeur do relacionamento entre as irmãs, as atrizes gêmeas Silvia e Luisa Pasello. Com Thierry aprendi a utilizar o que ele chamava de Círculo Neutro (e que eu chamo de Arena Dramática), base de quase todos os seus espetáculos.

 

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A Arena Dramática é um círculo de giz que delimita o espaço de ação da(s) personagem(ns). Tem quatro entradas (ou portas), representadas por quatro riscos curtos, perpendiculares à linha que delimita o círculo. No centro, há um X indicando onde a pessoa do ator deve posicionar-se com rigorosa precisão.

 

Vista de cima, a arena apresenta o aspecto de um alvo para o qual o público direciona perguntas e comentários ao ator. Este entra por uma das entradas do circulo em absoluto silêncio, posiciona seus pés entre as linhas do X no centro, mantém a sua postura simétrica e espera o público perguntar o que quiser. A partir desse momento ele está sob inquérito direto dele. Para responder, o ator conta com as informações que possui de si e da personagem – reais ou não – mas devem ter objetividade jornalística. Só assim ganha credibilidade. Este é um exercício que emprega o ator como suporte do texto porque é pela relação entre seu corpo e mente com o publico que se desenvolve a gramática verbal do espetáculo; não somente na escritura do autor, mas a partir de. Nas primeiras fases do trabalho, o ator deve responder às perguntas e comentários apenas verbalmente, sem gestos, sem expressões faciais, sem entonações que revelem emoções, sem maneirismos – o que importa é que o texto falado escorra de si. 

 

Tais perguntas, ao longo do procedimento, ajudam a definir a relação que o ator tem com personagem, a idéia que o público tem da personagem, a relação que o ator tem de si com a idéia originalmente concebida pelo dramaturgo do que poderia ser essa personagem. Estes são planos que coexistem, mas não necessariamente devem estar na mesma linha lógica. Durante o espetáculo, tal trabalho de dissecação exporá os signos mais paradoxais com limpeza, utilizando a metalinguagem cênica. A diferenciação dos limites entre realidade e ficção será possível se partimos do pressuposto que eventos e descrições inferidos pelo dramaturgo não esgotam a existência das personagens e que, como em Pirandello, uma vez criadas, as personagens tomam seu rumo próprio num inevitável desdobramento, num movimento de inércia. É a partir da exposição das contradições e pulsões pessoais de cada personagem/ator, emergidas ao longo do procedimento, que desconstruímos certezas falsas e pré-existentes e construímos a nossa relação com a mente do espectador.

 

Isso é de suma importância para o crescimento expressivo do ator, porque lhe sabota o “escudo” atrás do qual se esconde pela exacerbação virtuosa da personagem. Somado à evidência de que atuar é, antes de mais nada, mentir,  torna-o consciente da necessidade de buscar uma linguagem baseada na credibilidade e não na verossimilhança. Aqui, evidenciam-se as tênues diferenças entre seres reais e seres dramatúrgicos. Ao invés de ficar pensando: “Ah, ela vai dizer isso ou fazer isso por causa da estória”, o que seria correto do ponto de vista da dramaturgia convencional, coloca-se aquilo que se quer investigar dentro do círculo, e submete-se humildemente ao que ocorrer. O ator, então, torna-se uma máquina de dialogo e de imaginário.

 

***

 

De 1985 em diante, Thierry trabalha na fusão de textos de Christa Wolf (1929-2011), Arthur Schnitzler (1862-1931), Fëdor Dostoevskij (1821-1881), Heinrich Von Kleist (1777- 1811), sempre com a dramaturgia de Renata Molinari. Seu último trabalho foi o “Progetto Feuilleton”, jamais estreado. A parte teatral deveria ser paralela à fusão de mídia diferentes (Internet, jornais, radio, televisão, quadrinhos e telefone 0800): em 1998, Thierry Salmon morreu tragicamente num acidente de carro em  Hochfelden (França).

 

Aqui, um dos raríssimos documentos de Salmon em trabalho no círculo por ele inventado:

 

***

 

Além de utilizar largamente a Arena Dramática, tenho claros na memória alguns ensinamentos da colaboração entre os dois: “Trabalhar ao ar livre quer dizer utilizar também os barulhos que fazem parte do espaço, um teatro sonoro, mais que verbal”. As possibilidades do espaço devem ser colocadas à prova pela mente do ator. De Renata Molinari, tomei emprestada a convicção de que “se você se move, não numa dimensão de naturalismo estreito, mas de coerência orgânica no desenvolvimento de consequências da própria vida, não existe vida que não possa ser assumida dentro de um espetáculo. O espaço, os objetos, as cores, os sons, todos os elementos [desse ambiente] trazem uma necessidade dramatúrgica precisa e ficam à disposição [da leitura e da percepção] do espectador desde o começo. (…) O espaço cênico é um ponto de fuga, ou um território onde proponho nosso desafio como necessidade expressiva. Consideramos o espaço cênico como lugar artístico autônomo, um lugar mental onde as coisas acontecem. Um lugar que tem direito de existir quando somos obrigados a negá-lo: interrogamo-nos sobre a possibilidade ou não de sua própria existência, e, portanto, não o consideramos como um fato [real, mas de ficção]”. (**)

 

Construo realidades cênicas onde as mentes dos atores se estendem além de si mesmos, através da fé cênica e através de suas personalidades. É a mente que invade a personagem e que se sobrepõe ao espaço físico da representação. Acaba por criar o espaço real do acontecimento da ação (rua) e do teatro (arena), que coincidem, paralelos: traçam a linha de limite do que é arte e do que não é, desenham a forma do espetáculo. Não há necessidade de uma cenografia convencional. Basta um circulo de giz e um publico para fundar este sonhado lugar mental que dispensa qualquer convenção.}

 

 

(*) Aqui Ninguém é Inocente, organização Maurício Paroni de Castro e Ziza Brisola,  ALAMEDA editorial, 2007,  ISBN: 978-85-98325-46-0

(**) Ziza Brisola (São Paulo/SP, 1974) é atriz, bailarina, produtora e diretora artística da Companhia Linhas Aéreas. Participa da criação, atua e produz todos os trabalhos da Companhia Linhas Aéreas, entre eles, “Plano B”; “Pequeno Sonho em Vermelho”; “Enlouquecendo a Mamãe”; “Galinhas Aéreas”; Aqui ninguém é inocente; “O Animal na Sala”. Realiza no teatro, entre outros trabalhos: “Dentes Guardados e Clavículas”, direção de Mário Bortolotto; “Pornografia Barata” e “Confraria Libertina”, direção de Maurício Paroni de Castro; “Babel”, com o Circo Mínimo, direção de Rodrigo Matheus; “Ovelhas que Voam se Perdem no Céu”, direção de Mário Bortolotto. No cinema, atua em “Crime Delicado”, direção de Beto Brant; “Meu Mundo em Perigo”, com direção de José Eduardo Belmonte; e “Augustas”, com direção de Francisco César Filho.

(***)  “Crisalide-Eventi di teatro”, Paolo Ruffini, 1997, Bertinoro.

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