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Nunca preste atenção!

Publicado em: 05/09/2014 |

I- Não preste atenção…

 

Por defeito de nascença, embora guarde intacta na memória qualquer melodia, não presto atenção, não ouço, não lembro as letras de música nenhuma. Tenho uma vaga ideia das sonoridades que a letra faz, efeito das palavras cantadas, que eu involuntariamente deformo… Frequentemente distingo apenas cacofonias, distintas daquilo que foi criado. Letras distorcidas… As traduções equivocadas às vezes resultam noutro texto e são engraçadas.

 

Que pena! Há, muitas vezes, tanta inspiração nas palavras de uma música. Entretanto, no meu mundo, a melodia (vasta, vasta, vasta) sempre calou a boca da letra. Nenhuma letra está à altura da melodia. A linha melódica é maior. Quem há de negar que ela lhe é superior?!

 

Mesmo assim, essa surdez causa muito prejuízo: perde-se toda a fatia gorda de poesia contida nas letras das canções. Ou não será isso uma espécie de surdez?!

 

Um erudito da música não lamenta esse mecanismo de deletar uma porção da realidade. Ao contrário, afirma que ouvir música deste modo canhoto, subtraída das palavras que a letra traz, é a maneira mais sagrada de escutar o que quer que seja. Justamente porque as palavras “mal-ouvidas” se fundem em caracóis, resultando noutros significados, inéditos, inesperados, autônomos… Revelando sentidos que escapam até mesmo ao controle do letrista/compositor. Como em nossos sonhos noturnos, em que as coisas se embaralham de uma forma muito semelhante. Como na hora de acordar, quando estamos ainda igualmente molhados do processo primário… Como na infância, em que acordamos para a vida, próximos ainda ao não ser original, ao nosso estado inorgânico inaugural! Como os muito velhos, que são acometidos subitamente de uma lancinante lucidez…

 

Mesmo fora da música, na vida cotidiana, há quem garanta que, ao ignorar as palavras das histórias que alguém nos conta, fazemos sintonia direta com um fluxo de outro tipo, que jorra para fora de quem fala. Fluxo vital ainda mais revelador daquela alma singular que quer dizer alguma coisa. Ao desprezar o texto, damos vida às expressões não verbais: rostos de surpresa, admiração, tédio, interrogação, ou o que quer que seja… Tonalidades afetivas de infinitas cores. Manifestações que uma atenção exagerada ao discurso ocultaria.

 

Contradições! Escutamos atentamente (tensamente) aqueles com quem mantemos relações formais. Aquela outra atenção “distraída” reservamos aos íntimos! Pois essa atenção desatenta é a maior atenção que um alguém pode prestar a outro alguém. É, inclusive, uma indiscrição, que escuta o que não deveria: aquilo que a hipnose coletiva cuida de omitir. Segredos da intimidade!

 

É isto o que, há mais de um século, prega a fenomenologia, fazendo da distração um método: para que se flagre a essência das coisas, é necessário encontrar uma posição pré-reflexiva. Nesse peculiar canal, pode-se escutar as mensagens subterrâneas que o ser murmura – para as quais o próprio falante, emissor do comunicado, talvez nem sequer se havia dado conta. Distração é, então, caminho para a verdade! Verdade essa que a reflexão ocultou. E que um véu de penumbra resgata, recupera, reconstitui. Longe do pensamento diurno, o véu de penumbra é finalmente o único modo para consideração da alma.

 

No retorno às coisas mesmas, de Husserl, a essência está dada e é obvia e evidente – e não oculta e enterrada. Porém, para torná-la novamente visível, é necessário que se instaure um campo de devaneio. Devanear é também filtro contra poluições! Contra o excesso de informação que satura os dias que correm.

 

Devanear, desatentamente, nos salva de ficarmos capturados pelas versões oficiais da verdade. Garante que mantenhamos a salvo a capacidade de fluir e deslizar, fixando-nos a nada. Liberdade! A distração nos dá a prerrogativa de uma escuta seletiva, capaz de calar a massa de lixo, mar de informação que ensurdece e banaliza as palavras.

 

Ou, antes, pelo contrário: na distração resguardamo-nos de ser contaminados pelo hábito que, este sim, ensurdece. Pois, a rigor, nessa atenção que flutua, percebemos TUDO, mas de uma maneira desfocada… Assim, não privilegiamos algo, em detrimento de outro algo. Nada será suprimido e, como resultado, teremos como que dois “algos”! (o foco – ao contrário – identifica um algo só).

 

Distrair-se é ser capaz de escutar os ecos contidos nas entrelinhas das palavras! Distração é caminho para ler poesia. E é o jeito “certo” de ir ao teatro. Distrair-se está longe das certezas, e é ingrediente daquele que cria e daquele que frui do que se produz no campo das artes…

 

Distrair-se é posição perigosa. Por isso contraindicada no mundo das formalidades, dos protocolos, da etiqueta. Na distração, expostos e vulneráveis, somos mais suscetíveis a sustos; aptos a conjugar uma misteriosa voz passiva: distraídos, sem defesa, somos “falados pelo nosso próprio discurso” – assim como o ator é agido em cena e o sujeito adormecido é sonhado pelo sonho. Descontrole! Nessa zona de névoa dispersa, facilitamos que se revele a marca de uma força que nos ultrapassa: os deuses das pequenas coisas dando o ar da graça.

 

Nas brincadeiras infantis, as crianças entram fácil e rapidamente num estado naif! Em tudo equivalente a essa atenção distraída, em que se conjuminam ingenuidade e despretensão! Posição em que comparecem os registros da ética e da técnica, unidos, inaugurando um território de humildade – do sujeito que escuta e do sujeito que cria.

 

II- Um parêntese: A multidão sussurra!

Nas últimas duas décadas, a música popular encheu-se de palavras – bem mais que a erudita. Quase ao ponto de calar a porção propriamente musical da música. Quase ao ponto de transformar-se num panfleto! Esse movimento culmina no rap: tentativa da palavra furar a melodia (e explodi-la). Mas, se escutarmos um rap com toda distração possível aqui prescrita – como uma massa de palavras amorfas (significantes que ainda não se desdobraram em suas significações ou sentidos), – ouviremos algo como uma reza-manifesto. Há uma multidão sussurrando ali…

 

Aliás, vale lembrar: o primeiro rap da história da música é justamente uma reza, paradoxalmente composta no diapasão erudito: da ópera “Porgy and Bess”, de 1935, a ária “Oh, Doctor Jesus”, arrepiante (e pouco conhecida), é apenas um murmúrio. Súplica de cura religiosa e protesto de uma mãe, voltando-se a Deus, em nome de seu filho doente, numa espécie de contraditória heresia.

 

George Gershwin compunha na fronteria do jazz e do erudito. “Summertime”, por exemplo – na origem, uma cantiga de ninar, executada nas partes iniciais de Porgy and Bess” –, é expressão máxima dessa hibridez genial. Por isso tantas grandes cantoras populares emprestaram suas vozes a traduzi-la em recriações irretocáveis.

 

Judeu, Gershwin teria dito que todas as músicas de “Porgy and Bess” só poderiam ser cantadas por negros. Apenas eles seriam capazes de contemplar o sublime dessas composições.

 

Sabemos que Janis Joplin cantou “Summertime” – maravilhosamente e mais de uma vez. Janis Joplin não era negra. Mas era Janis Joplin!

 

III- A obra de arte

Toda obra produzida com alma é um fenômeno de borda. É criada na fronteira e desafia limites. Concebida sempre na penumbra e na distração, como um filho, nasce na passagem entre dois campos. Entre o sono e a vigília (“Summertime”, lullaby, cantiga de ninar). Entre o animal e o humano. Entre a máquina e o homem. Entre a vida e a morte. Entre branco e negro. Entre palavra e som. Entre força e forma. Erudito e popular. Sagrado e profano…

 

Entre o ateísmo e a ideia de deus, nascem as obras, como nos ensina o manifesto antropofágico!

 

IV- Uma confissão proustiana!

Ser feliz, pra mim, muito antigamente, era escutar logo cedo as vozes de minha mãe e de minha avó, as mais queridas, conversando na cozinha. Eu acordava num mundo onde tudo estava certo, tudo estava no lugar – como no poema “Aniversário”, de Fernando Pessoa.

 

Não me interessava a semântica daquelas conversas, somente as suas sonoridades. Essa música me informava de que eu vivia num mundo que se encaixava perfeitamente, peças de um quebra-cabeça de amor exato.

 

Os assuntos, eu suspeitava, eram relativos ao cotidiano – nada de relevância social! Uma meia que precisava ser costurada, uma abreugrafia que tinha que ser providenciada, o frango a ser desfiado… Assuntos banais e, por isso, interessantes, úmidos de cumplicidade. Tanta vida miúda nas cenas pequenas da rotina, mundo maravilhoso do nada-de-extraordinário!

 

Como eu era muito pequeno, mesmo a banalidade me parecia complexa demais. E, ao mesmo tempo, cheia de segredos óbvios e generosamente abertos para mim. Por essa razão, eu ouvia esses sons familiares como quem escuta mesmo a execução de uma música. Sem letra, só melodia.

 

O tempo passou e eu cresci. Mas retive pra sempre o vício de não prestar muita atenção naquilo que dizem as pessoas que eu amo. Sou feliz hoje se almoço com amigos que conversam entre si.

 

Fico alheio nessa alegria clandestina de um mundo perfeito que magicamente se refaz. Nada que digam parece importante o suficiente para ser acompanhado. Nada rouba o meu espírito dali onde ele se aloja. Quintal de veludo azul. Nada me tira do estado de exceção em que me enfio, na fruição de palavras-jabuticabas, sem significado nenhum, que não o de expressar que tudo está certo como um relógio regular. Como uma “religião qualquer”.

 

Os amigos, às vezes, se queixam dessa “desatenção”. Claro! Ninguém gosta de ser ignorado por um interlocutor não interessado em ouvir! Porém, em minha defesa, poderia dizer tudo o que disse aqui! E mais: só não ignoro quem não amo!

 

Depois, cresci mais. Ouvir pessoas passou a ser ofício. “Ouvir”, assim, entre aspas. Porque a atenção profissional que se dispensa aos discursos e concertos emitidos por um falante é justamente – sempre foi – daquele tipo exercitado desde as manhãs da primeira infância. Para apanhar e recolher os comunicados do discurso que se dão apesar do discurso. Para flagrar, repito, o que uma pessoa é bem na sua essência. Pré-reflexivamente e antes de tudo!

 

V- No Youtube é possível ouvir Ella Fitzgerald cantando “Oh Doctor Jesus”, do álbum “Porgy and Bess”, clássico do jazz, gravado juntamente com Louis Armstrong em 1957. Há uma outra versão impressionante de Cleo Laine cantando a mesma música, num álbum dessa ópera, também em versão jazz, gravado com Ray Charles em 1976 – mas nunca consegui encontrá-lo na internet. Talvez não tenha ainda caído em domínio público…

 

VI- Pós-escrito: Sim, sou disléxico.

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]

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