SP Escola de Teatro

Paulo José por Tania Carvalho

Ontem, dia 20 de março, o ator Paulo José completou 76 anos. Mesmo convivendo há 20 anos convivendo com o mal de Parkinson, ele continua na ativa, com trabalhos no cinema e na TV, especialmente. Dono de uma voz inconfundível, ele ainda faz alguns trabalhos como locutor e especiais e documentários. 

Paulo foi casado com a atriz Dina Sfat por 17 anos, com quem teve três filhas: a atriz Bel Kutner, Ana, que também se aventurou na carreira, e Clara.

Começou a fazer teatro em 1955, em Porto Alegre, onde ajudou a criar o Teatro de Equipe, juntamente com Paulo César Peréio, Lilian Lemmertz, Ítala Nandi e Fernando Peixoto. Em 1954, atuou na sua primeira peça: “O Muro”, de Jean Paul Sartre/Lineu Dias. Entre inúmeros trabalhos no teatro, destacam-se: “Os Fuzis da Senhora Carrar”, de Brecht; “A Mandrágora”, de Maquiavel; “O Filho do Cão”, de Gianfrancesco Guarnieri, do qual foi também diretor, e “Tartufo”, de Molière. Dirigiu e atuou na montagem carioca de “Arena Conta Zumbi”. Esteve durante algum tempo afastado dos palcos, tendo regressado em outubro de 2009, para participar em “Um Navio no Espaço ou Ana Cristina Cesar”.

No Rio de Janeiro, Paulo José formou, junto com Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Juca de Oliveira, Paulo Cotrim e Flávio Império, o grupo que adquiriu o Teatro de Arena, criado por José Renato, em 1962.

A seguir, para homenagear o ator, reproduzimos a apresentação do livro “Paulo José – Memórias Substantivas”, que a autora Tania Carvalho escreveu para a coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em março de 2004 (para ler a obra, na íntegra, clique aqui).

Paulo José por Tania Carvalho
Paulo José odeia adjetivos, especialmente quando se referem a ele. Elogios fáceis não o encantam. Muito pelo contrário. Sua recomendação foi que este prefácio fosse o mais substantivo possível. Assim como o livro. Seja feita a sua vontade! Que suas memórias sejam substantivas. Com substância, muitos substantivos e poucos – somente os inevitáveis – adjetivos.

Ator, diretor, iluminador, figurinista, maquiador, cenógrafo, tradutor, produtor, administrador, Paulo José fez tudo quando o assunto é palco, tendo sido um dos participantes do Teatro de Arena, paradigma do trabalho de grupo nos anos 60. No cinema, explodiu como ator, e desde “O Padre e a Moça”, “Todas as Mulheres do Mundo” e “Macunaíma” é presença nas telas há quase 40 anos. Na TV, criou novos formatos e foi premiado como diretor; como ator marcou a sua imagem com tipos descontraídos, de comédia, brincou ao enveredar pelo mundo infantil com o inesquecível Shazam, a Xuxa dos anos 70, e brilhou em papéis dramáticos, como o alcoólatra Orestes, em “Por Amor”.

Em tudo o que fez, garante, sempre houve a necessidade de entender o porquê, de desvendar o mecanismo, de compreender tudo que estava envolvido no ato, para isso se valendo de todos os grandes mestres das artes, da literatura ao teatro.

E de passar adiante, mais do que um diretor, como alguém que gosta de pensar o improvável, de experimentar o impossível, de consolidar o etéreo, de sistematizar o volátil.

Conviver com Paulo José é enriquecedor. As entrevistas com ele não seguem uma ordem lógica, cronológica, mas um ritmo determinado pela importância que deu a determinados momentos de sua vida e, em especial, ao presente e ao futuro. O passado é referência, saudade, material de trabalho, conhecimento acumulado, mas a paixão, certamente, se destina ao que virá. Em projetos ainda não realizados, mas planejados e estudados, como gravar CDs de poesia, escrever livros sobre suas experiências, dirigir cinema, entre milhares de outras possibilidades.

Volta e meia, Paulo abre o notebook para mostrar algumas coisas alinhavadas, exercícios propostos a atores no seu mais recente trabalho de direção, por exemplo. Remexe em pastas para fornecer material de pesquisa, fotos, que reavivam a memória e a vontade de falar mais. Livros, nos quais busca uma poesia, que complementa o seu pensamento. Às vezes as palavras embolam, uma das consequências do mal de Parkinson, doença com que convive há 10 anos, mas ele logo recupera a força da voz, fala como ator – como brinca –, embora os pensamentos jamais se confundam, nem as citações, algumas poesias relembradas, nomes de autores, diretores teatrais, que por vezes fazem a confusão, sim, mas da interlocutora, soterrada pelo mar de informações.

Alguns dias, Paulo antes de iniciar a conversa toca no teclado uma música de Tom Jobim. Ele, que estudou música por muitos anos, hoje toca por prazer e dever, porque precisa exercitar a mão direita.

Em outros, recebe ainda exercitando a voz, como pede a sua foniatra, falando alto, com as sílabas bem definidas, como se no palco estivesse, com a tal voz de ator. Ou ainda testando o gravador, já que Paulo gosta que tudo funcione certo. No estúdio, que montou na sua casa na Gávea, onde grava todas as locuções, uma das vertentes do seu trabalho, além de poesias e músicas, as conversas podem durar horas, nas quais ele fuma inúmeros cigarros (pouco depois de concluídas as entrevistas, ele deixou de fumar) e bebe litros de água.

Às vezes uma das filhas interrompe para combinar alguma coisa para os dias posteriores. Ana, a filha do meio, acompanha-o nas locuções, nas aulas de voz e em tarefas que Paulo se impõe, como a gravação semanal de diversos poemas; Clara ajuda-o a organizar o material para futuros livros. Ou Mirian, a fiel assistente, que mantém os arquivos de fotos organizados e colabora para que ele marque os horários das entrevistas para esta biografia. De vez em quando um dos gatos se enrosca nas pernas do dono exigindo carinho.

Nada, porém, distrai Paulo, que retoma sempre o fio da meada interrompido, um longo fio de uma carreira de quase meio século.

Rigoroso com seu trabalho em todos os meios, até mesmo neste livro, além de se submeter a quase uma dezena de entrevistas, cada uma com não menos de duas horas, Paulo José ainda fez questão de reler tudo o que havia sido escrito, acrescentando novas ideias, cortando outras. Foi um trabalho certamente cansativo, profundamente meticuloso e quase interminável. E que foi totalmente bem-vindo. Nas madrugadas, sua hora predileta para escrever, ele deu toques delirantes ao relato.

Confira lá no capítulo “Todas as Mulheres de Paulo” a sua descrição da madrinha da novena do Mês de Maria que despertava a sua libido. Quanto mais lia, mais se empolgava com a tarefa. Os capítulos não foram revisados uma, mas dezenas de vezes, sempre com novas inserções, correções, mudanças. Às vezes ele funcionou como um ombudsman de si mesmo, explicando melhor determinadas posições ou revendo algumas declarações mais duvidosas.

Em um trecho deste livro, Paulo José conta que Flávio Império de vez em quando enjoava de fazer os figurinos em determinadas produções do Teatro de Arena e ele assumia a tarefa. Mas, meio escondido, Flávio dava-lhe dicas preciosas, sendo assim o coautor secreto do trabalho. Digamos assim, que, neste livro, ele foi o Flávio Império: aumentou o relato com novas e preciosas informações, trocou a ordem de parágrafos, mudou palavras, sugeriu novas formas, acrescentou mais do que apagou, até reescreveu um capítulo inteiro, o de abertura, enfim, interferiu diretamente em todo o processo, mas sempre de maneira delicada, respeitosa e divertida, às vezes como um menino que faz travessura, em busca de um resultado com rigor, como gosta. Se a metáfora cinematográfica é possível, escrevi o argumento, a espinha dorsal da história. Paulo fez o roteiro e dirigiu.

Uma coisa é certa e posso afirmar. Paulo trilhou o caminho que desejou, fez tudo o que quis e ainda vai fazer muito mais. Comendo o mingau quente pelas beiradas – como gosta de definir. O que não quis, ele deu um jeitinho de desviar a atenção, de fingir que nem sabia fazer, garante. As adversidades – claro que elas existiram – foram digeridas. E quando a barra pesou, seja no período dos anos de chumbo, quando as possibilidades de trabalho diminuíram, seja há alguns anos quando o Parkinson passou a ser uma realidade em sua vida, foi no bom e velho Sartre, que o eterno existencialista Paulo José buscou a sabedoria: A vida começa do outro lado do desespero.

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