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Papo com Paroni | Uma boia de salvação: a mise en espace

Publicado em: 21/10/2013 |

* Por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

Para se salvar o teatro do naufrágio em alto-mar causado pela luta suicida dos formalistas da convencionalidade contra os formalistas do vanguardismo, precisamos não de um farol posto na costa, mas de uma boia.  Essa boia talvez seja a mise en espace. A preparação da tradicional leitura de mesa é o estágio imediatamente anterior à criação dos movimentos de palco. Num procedimento laboratorial, é a formalização dos primeiros movimentos de invenção coletiva ou individual.  

 

Em varias direções que fiz para o Centro di Ricerca per il Teatro (CRT) de Milão, costumava ilustrar o público num encontro sobre todos os aspectos do projeto: cenografia, música, luz, através da interpretação lida pelos atores, durante uma esquemática movimentação no palco. Chamava-as de “serata d’ approccio”; mas era a mise en espace. Naquela “noite de aproximação”, o público fazia o privilegiado papel do crítico – antes da estreia. Aliás, eles eram convidados também. Não se substituía o espetáculo, apenas o aperfeiçoava e, eventualmente, corrigia-se completamente a encenação. Todos nós, diretores, éramos incentivados àquela atividade: Thierry Salmon, Peter Schumann, Eugenio Barba e muitos outros.  O incentivo não vinha da direção artística do Centro. Vinha de estudiosos, dramaturgos e dramaturgistas como Renata Molinari, Giorgio Zorcù, Remo Melloni, Renato Gabrielli. Assim o fizemos, para quem se lembra, na Oficina Cultural Três Rios, em nossa estada de um mês em São Paulo, em 1990. (O espetáculo em questão era “Oltremare”, texto de Renato Gabrielli baseado no diário de viagem de Albert Camus ao Brasil em 1949).

 

A prática bania o ranço “literário” da encenação, ao basear o enfoque da ação no espetáculo e não no misticismo do papel impresso. Por outro lado, montagens que necessariamente não partiam do texto literário alçavam um voo crítico na dimensão nascitura do próprio projeto.

 

Em tempo: ser contra “ranço literário” não significa ser contra a literatura teatral. Significa não ver a literatura como base inconteste e imobilista da arte teatral: nunca o foi, nem mesmo no bom teatro burguês. A base de qualquer arte teatral digna do nome sempre foi a poesia.  Em verso, em prosa, escrita, oral, o teatro também é consequência dela.

 

Vejamos o que disse Dario Fo:

“Há escolas para atores, mímicos, cenógrafos, diretores, técnicos e produtores teatrais, exceto para autores de teatro”. Existem faculdades de letras antigas e modernas, nas quais podemos aprender a escrever contos, elzevires, ensaios ou romances. Porém, não qualquer faculdade que ensine a escrever um texto teatral. A obra que, além de palavras, inclui a descrição de um espaço cênico, a indicação dos gestos, dos tons, das frases relevantes e as de pouca importância, a menção do momento em que a ação se contrapõe ao emprego das palavras e vice-versa. É preciso também revelar o local em que a fala deve ser dita: no proscênio ou no fundo do palco e que maneira: caminhando, sentado, deitado ou balançando. Além disso, sob que tipo de iluminação: dentro da luz difusa, com a luz recortada, em contraluz. E para finalizar, tem que sugerir se o ritmo precisa ser cadenciado, se a fala pode ou não atingir picos elevados, se as tonalidades e as afetações devem ser achatadas ou se é necessário a invenção de ladainhas. Quem escreve para teatro precisa saber ler uma planta e uma vista frontal do cenário, conhecer o que é um declive ou uma americana com um PC ou como funciona um palco giratório… estarei fazendo terrorismo? Conheço a resposta: todas essas coisas devem ser do conhecimento do diretor… e dos técnicos! Eis aí o erro.

É como uma pessoa que pretende fazer o projeto de uma casa e depois, para os batentes, as escadas, os forros, o teto, enfim, para todo o acabamento, acredita que as providências necessárias caibam à empresa de construção… Idiota… Ninguém o avisou que o acabamento é precisamente a casa?”  [In Dario Fo, Manuale Mínimo dell’Attore, 1987, Giulio Einaudi Editore, Torino]

 

Ainda que esta seja uma convicção pessoal, é importante respeitar o sentido geral do parágrafo: a importância da leitura de um espetáculo posta não somente num texto, na ação ou num emaranhado psicológico. É o que se faz na maioria dos casos, dada a carência de quotidianidade de réplicas, interrompidas pela ditadura militar (hoje pela massificação televisiva) e pela falta crônica de recursos. É a nossa antipolítica cultural. 

 

Não podemos remediar a destruição feita, mas podemos incentivar o começo de uma nova tradição, através da percepção da necessidade que temos dela para não morrer de novo. Ler e organizar leituras em substituição a encenações é tão letal ao teatro quanto promover o ódio ao texto escrito.

 

Invoco a conclusão a São Dario Fo:

 

“(…), sobretudo para retirar dos atores a falsa e perigosa ideia de que o teatro não é nada além do que literatura posta em cena, atuada e cenografada, em vez de simplesmente lida.

Não é assim. Teatro não é literatura, mesmo quando e a qualquer custo querem enquadrá-la como tal. Brecht afirmava, referindo-se a Shakespeare: ‘infelizmente, é belo também à leitura. Esse é o seu único defeito’. E tinha razão. Uma obra teatral de valor, paradoxalmente, não deve em qualquer modo parecer agradável à leitura. Ela deve revelar o seu valor somente no momento da realização cênica. Podem dizer o que quiserem, mas somente quando vi representadas no palco obras como ‘Don Juan’ ou ‘Tartufo’, de Molière, entendi que se tratava de obras-primas.”

 

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