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Papo com Paroni | Um modo de ser dramaturg

Publicado em: 21/04/2014 |

*por Maurício Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro

 

Criação necessária de uma relação artisticamente codificada no tempo e no espaço entre atores e público, o ato teatral convencionalmente chamado espetáculo é o ápice de uma intersecção de duas performances: a primeira, dos atores, que estudam, são dirigidos, ensaiam, narram, representam e saem do espaço onde desempenharam tais atos. A segunda, do espectador, que escolhe data, companheiros e programa, assiste (e lê) ao espetáculo, sai pra jantar ou outras atividades cotidianas e talvez comente ou se lembre dele.

 

Trava-se uma batalha em que a maioria dos diretores modernos pretende condicionar a experiência de assistir ao espetáculo à sua (do diretor) leitura particular. Como Dom Quixote, o diretor perde sempre, mas, qual Sísifo – o de Camus –, justifica a sua existência através da ocorrência dessa derrota. O fato é que o cotidiano do espectador influencia muito mais a leitura que os instrumentos de que o diretor dispõe; nossa época é presa da voracidade do esquecimento ou da reconstrução pontual de uma incerta memória autenticada como “científica”. (**)

 

 

Para poder dirigir no meio dessa desordem de signos sem necessariamente destruir tradições, elaborei uma escala de evidência social das intensidades interpretativas, com gradações:

 

A primeira parte da escala vai da teórica e impossível ausência total da figura do ator (grau zero de representação), evoluindo para confissão pessoal pública, representação hiper-realista, realista, até o grammelot e a máscara pura, de teatralidade declarada ao máximo (o grau dez).

 

A segunda parte da escala do vai do grau zero de não representação à esquizofrenia (grau dez “negativo”). Esta inversão de sinal está fora de nossa alçada, por situar-se no terreno da psicopatologia.

 

Não recuso, nem renuncio, como métodos legítimos de trabalhar um espetáculo, as inflexões propostas pela direção convencional em relação ao texto (coro, jogral, solo, recitação, declamação) e em relação à dicção (ritmo, volume, cor, respiração, sentido, emoção, ideia, diálogo), que têm a ver com a encenação do drama a partir da palavra literária. Nem recuso o respeito estrito a uma dramaturgia preexistente, se assim for mais conveniente. Apenas utilizo também um método pessoal de composição de textos na escrivaninha. Prefiro, enfim, que os textos estejam diretamente ligados à experimentação dramatúrgica feita através da mente e do corpo do ator. Abaixo, elenco uma breve descrição de minhas técnicas nesse tipo de composição textual:

 

Contaminação – misturar formas, palavras e línguas diferentes.

Inversão – inverter o sinal e o significado das palavras.

Emparelhamento – interpretar o texto em paralelo, intercalando as pausas entre as falas dos outros, de modo a fazer com que as associações lógicas decorrentes sejam feitas pela mente do ouvinte.

Sobreposição – interpretar textos ao mesmo tempo, variando os volumes de modo a guiar a audição do espectador, assim modificando-lhes a compreensão.

Acostamento – trabalhar com a oposição de sinal dos conceitos ou formas contidos no texto a ser dito. Um exemplo: fazer seguir a um monólogo de Shakespeare um artigo de imprensa marrom.

Tapete sonoro – sobrepor textos de forma quase melódica, de modo a criar uma jaculatória que pode ser semanticamente compreendida, ou não, pelo espectador.

Colagem – enfileirar os textos cronologicamente, de acordo com a compreensão de seus significados.

Colagem casual – aproveitar o discurso – não necessariamente teatral – de alguém e encaixar o próprio, de modo a alterar o significado dos dois discursos – muito comum também na intermedialidade.

Oposição – o mesmo procedimento acima, opondo as respectivas compreensões lógicas, por exemplo: utilizar um texto dito por um habitante negro de Nova York e colocá-lo na boca de um membro caucasiano da Ku Klux Klan do sul dos EUA.

Saturação – idem, somadas às compreensões e contextualizações lógicas.

Exasperação – tratamento do texto de maneira dadaísta, alterando a sua estrutura semântica ao acaso das condições do espaço. Um exemplo: gritar o Manifesto Comunista numa sessão de descarrego de uma seita religiosa.

Sincronia – o mesmo procedimento acima, a sincronizar com deferentes condições de espaço. Um exemplo: falar pausadamente em volume baixo durante repentinos silêncios de uma multidão, como narrado por Camus na cena da visita de Marie Cardona a Mersault, em “O estrangeiro”.

Informação pura – informar o público através de documentos e mídia;

Informação subjetiva – informar o público através de confissões pessoais do ator;

Construção – utilizar a dialética como somatória de sínteses entre o texto e todos os elementos constitutivos da direção moderna: atuação, iluminação, figurino, cenografia, sonoplastia, composição musical, interpretação musical, escritura do programa de sala, produção e divulgação teatral, cenotécnica.

Desconstrução – Utilizar os elementos acima de modo a subtrai-los ou não ressaltando o significado de suas respectivas ausências.

 

Aparentemente casuais, esses procedimentos funcionam somente se muito bem planejados. Conferem ao espetáculo uma forma bastante reconhecível, o que pode ensejar um charlatanismo maneirista. A assimilação e a compreensão desses métodos ainda não teve tempo de ser metabolizada por um público que, justamente, recusa as chatices do mau teatro. Acredito que a sua afirmação seja uma questão de tempo, como todas as inovações na dramaturgia. Por sua natureza, já são largamente utilizados no cinema.

 

Modernamente inventada na Alemanha, a figura do dramaturg é descrita como sendo um conselheiro de textos de teatro público estável. A definição seria simples se os descendentes de Hegel não classificassem tudo; chegaram a sutilezas que somente eles entendem. Além do arquétipo “der” dramaturg, há o Spielplandramaturg, o Chefdramaturg, o Autorendramaturg, o Offentlichkeitsdramaturg e o Produktionsdramaturg… Qual o não germânico que entenderia de verdade o tipo de trabalho que fazem? Não sei.

 

Por minha conta, compilei categorias e métodos de composição do texto a partir dos trabalhos com Renato Gabrielli, Heiner Müller e Renata Molinari (ao meu lado na supervisão de textos e de direção). Nunca tive a intenção de representar tudo o que se vivencia nos procedimentos de pesquisa teatral. É impossível encenar o irrepresentável. Contextualizo o fato, através de qualquer signo que delimite o começo e o fim da representação enquanto obra de arte. Pode ser uma moldura, uma trama, uma luz, uma campainha, venda de ingressos, um anúncio, seguido pelo fato substancial e delimitado do espetáculo. Desse ponto de vista, a diferença entre o trabalho de dramaturgia do ator e o de dramaturgia literária é que, no primeiro, escreve-se com e através do suporte corporal e mental do ator, enquanto que no segundo usa-se somente o papel como suporte para formas dramáticas previamente pensadas na mente do autor.  O dramaturg representa menos e contextualiza mais a realidade da cena. Isso lhe consente enfrentar o desafio de significar realidades aparentemente irrepresentáveis, mas presentes no imaginário dilacerado contemporâneo, fundamental para a viabilidade de um espetáculo, hoje: o fragmentado trinômio rua/ plateia /espaço de atuação.

 

Nesse tipo de trabalho, os atores e as personagens trafegam livremente entre si e seus espaços expressivos, convencionais ou não.  São os parteiros de uma gramática de cena; o texto do espetáculo escorre através deles e pode ser diferente dos textos originários do autor de gabinete. É o espetáculo do real fenômeno a ser apreciado. Por sua vez, o espetáculo torna-se também parte de um procedimento em constante reestruturação. É um trabalho que se desenvolve com regras precisas, que traça uma trajetória que não se cristaliza. Mantém estrutura e sintaxe cênica paralelas e abertas às interferências da geografia e das relações pessoais – tanto com o público como entre os atores.

 

(*) Dada a repercussão positiva de artigos em que relato experiências pessoais de palco, disponibilizo informalmente as principais influências que nortearam a construção e composição da poética que pratiquei na Itália, na Escócia, em Portugal e no Brasil. São artigos designados com a palavra “Influência” e foram publicados no livro “Aqui ninguém é inocente”, de minha autoria, em conjunto com Ziza Brisola, pela Alameda Editorial em 2006, que gentilmente libera a publicação aqui. O livro fez parte do projeto “Voltaire de Souza, o intelectual periférico”, patrocinado pelo Fomento no ano 2005.

 

Assumo o risco de parecer pedante, mas parece-me coisa útil descrever experiências vividas com algumas das mais lúcidas mentes do teatro  do final do século 20, no fim do período em que a ditadura militar brasileira depredou financeira e intelectualmente o nosso teatro. Principalmente devido a essa penosa situação, muitas personalidades citadas nunca – ou raramente – vieram ao Brasil. O contato de nossa cultura teatral com elas dependeu mais de artistas exilados ou radicados no exterior ou se deu exclusivamente através de livros e estudos universitários. Os verdadeiros dependentes da necessidade de troca artesanal, os atores, foram condenados ao isolamento. O inverso também é verdadeiro e o que se conhece do teatro brasileiro num universo dominado pelo eurocentrismo não faz senão que agravar essa triste realidade.

 

(**) Conforme M.P.C., artigo publicado no caderno “Mais”, Folha de S. Paulo, 1998.

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