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Papo com Paroni | Tema delicadamente criminoso – II (*)

Publicado em: 27/07/2015 |

Maurício Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro
 
 
Esta é a segunda parte de um artigo longo sobre teatro estendido ao cinema, que aconteceu em minha vida após curar-me de um grave linfoma em 2004. A morte quase aconteceu também, mas, no lugar dela, aparecem as figuras contadas a seguir. (**)
 
 
***
 
 
O ser humano é sempre maior que a arte. Ou, pelo menos, vive no contraste de mundos diferentes e paralelos. Pirandello tratou exaustivamente do problema. Condicionou tudo o que veio depois dele. O roteiro de “Crime delicado” tem muito disso. Ao escrever as críticas dos espetáculos encenados no filme, tentei respeitar a erudição e propriedade intelectual das escritas no romance de Sergio Sant’Anna. Numa delas, mencionei que, nas ícones bizantinas, o corte do enquadramento das molduras (com a resultante reprodução apenas parcial do corpo dos santos nelas representados) gerou violentos conflitos entre os fiéis da cidade de Bizâncio. A parcialidade retiraria a santidade imanente das mesmas. Escrevi umas dez versões, sempre reprovadas pelo severo Sinédrio. Entretanto, a alusão foi imediatamente aproveitada pela vertiginosa intuição de Beto. Ele anteviu e deu um final seguro ao filme ao guiar a entrevista de Ehremberg (“falta uma perna…”) a um final de silêncio antonionesco presente na atuação de Marco Ricca. Isso havia sido a causa primeira da escolha da peça “Farsas libertinas”, do Atelier de Manufactura Suspeita (***). Havia uma cena em que a deuteragonista se liberta do cinto de castidade que era obrigada a usar. Beto associou-a ao momento final — em que a protagonista do filme retira a prótese e conquista a liberdade da escolha de usá-la ou não. Ela deposita a prótese embaixo da obra de arte que a retrata. A prótese, instrumento estético e vital para ela, vira uma obra de arte; ela voa para a liberdade de sua inteireza.
 
 
Como a personagem de Antonio vê tudo isso? Como fato estético “puro”, em choque direto com sua atração sexual, que ele não compreende. É vítima de uma formação intelectual bloqueadora de sentimentos humanos (grande personagem essa — e o Marco pontificou, no “Sinédrio”, para que nós atentássemos ao fato de que este também era um imenso problema humano: a ele falta não o sentimento, mas um mínimo instrumental afetivo para compreender a própria existência). Entre vida e estética, Antonio Martins é desprovido da percepção da gangorra vivida no quotidiano pautado pela prótese da perna vivido por Inês/Lilian. Para ele, estética não passa de… estética!
 
 
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Há uma série de inspirações buñuelianas no filme, que vão além da mera influência plástica. Octavio Paz declarou, ao falar de Buñuel, que “ao homem acorrentado basta fechar os olhos (e sonhar) para mandar o mundo em pedaços”. Quais seriam tais inspirações? A elas: a fragmentação de tudo (diálogos, corpos, estórias, cenas, e, finalmente, a própria prótese) se recompõe a partir dos enquadramentos teatrais, da música e do silêncio, que ligam as cenas, das declarações abertamente humanas em total e constante contradição com os aspectos artísticos e formais. O choque da interpretação teatral com a estória de vida de seus atores é fundamento do Surrealismo do cineasta.
 
 
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Na preparação da Lilian Taublib, lutou-se com a condição do esforço físico e da urgência de comunicar o próprio sofrimento e felicidade. Sem uma gramática, vai-se ao inferno quando o próprio sofrimento não pode ser contado. O Homem é social. Isso é o Homem, a condição humana, não é preciso ler Sartre para perceber. Se pudesse existir o homem só, não haveria o Humano. A última galesa existente já não se comunicava com o seu Galês natal: ninguém a podia entender. Uma língua e uma cultura, por conseguinte a Humanidade, morrem quando já não há mais possibilidade de comunicação.
 
 
Concentrei-me em prover Lílian de condições de conferir Beleza à sua condição, por meio da comunicação artística. Ela conseguia dar-lhe forma, como num claro escuro, além da tridimensionalidade que se exige de qualquer bom ator. Mas isso ela já tinha de natureza. Foi só dar um empurrão. Difícil foi dar uma linguagem formal ao que já existia. Tínhamos uma palavra secreta, por isso mágica, para superar as dificuldades naturais das filmagens, mas não a posso revelar; deixaria de ser mágica. Era neologismo entre o italiano e o português. Espero que isso a ajude em outras coisas também. Acho que fui um “gramatizador” de atores, mais que um preparador.
 
 
***
 
 
Há o oferecimento da prótese real de Lílian à obra de arte, seguido da ausência da mesma na vida e no corpo da atriz. É difícil enquadrá-lo, defini-lo, decodificá-lo. É diferente da água com açúcar. Invade rudemente a praia com água de coco e brisa fresca criada pelo mau comércio feito para deficientes físicos. Irrita quem não encontra termos para rotular a complexa e refinada gramática que respeita a pessoa antes da carreira artística. É uma incógnita o que acontece na cabeça do espectador. 
 
 
Esse foi o triunfo de Lílian e do acordo que fizemos. Quem assiste ao filme, assiste a uma magnífica vitória à qual o Beto deu o eco merecido; eco elevado à declaração final do filme, quando ela abandona a prótese. A perna amputada, a ausência de uma parte física da vida de uma pessoa foi transformada na matéria de numa obra de arte; nesse caso um filme e um quadro, a partir de um romance. 
 
 
Michelangelo declarou apenas ter removido o volume excedente de um bloco de mármore para encontrar o seu magnífico David, o padrão de beleza que até hoje usamos para definir as proporções das pessoas consideradas belas. Na Arte, não é possível viver experiência mais intensa que a ausência radical de si mesmo para nela reencontrar tudo o que se foi para sempre.
 
 
(Continua)
 
 
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(*) Reescritura de “Crime delicado ou A vida é mais que a estética”, publicado no site Cronopios, em 28/01/2006.
 
 
(**) O filme que surgiu em 2005 pode ser visto aqui – https://www.youtube.com/watch?v=IJ5IY-T5fHs
 
 
(***) O espetáculo que abre o filme é “Farsas libertinas” (2005), a conclusão de um estudo teatral proposto e nascido no dungeon (masmorra) de um clube fetichista real, o Clube Dominna. Revisita situações e papéis vivenciados dentro do dungeon e é construído como uma comédia histórica sobre a liberdade da criação erótica, com as seguintes tramas: uma apreciação pseudocientífica das origens da sexualidade humana a partir do emprego do jogo e da transferência do poder erótico. Os quadros são carregados de ironia e de paródias de práticas fetichistas as mais diversas: bondage (amarração), spanking (chicotes), inversão de papéis, travestimentos, masoquismo, tortura psicológica.

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