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Papo com Paroni | Stanislavski além do espelho: mais do que parece

Publicado em: 14/04/2015 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

Estamos acostumados à leitura da obra de Stanislavski ainda condicionada pelas primeiras traduções que a trouxeram ao Ocidente, via Estados Unidos. A estória é conhecida, mas não custa abordá-la pelo modo “italiano” que conheci, além da leitura de mesa com acento na direção levada àquela península pela importantíssima atriz e diretora Tat’jana Pavlovna Pavlova (1893-1975). Esse foi um dos caminhos que Stanislavski tomou para vir ao Brasil antes de Eugenio Kusnet (1898-1975) (*): os diretores italianos do Teatro Brasileiro de Comédia. Com aporte autêntico das bem-vindas estadas de Vassiliev e outros, há também o livro “Eugênio Kusnet: do ator ao professor”, de Ney Piacentini (**). Desnecessário que eu entre, pois, nessa vereda. Gostaria somente de iluminar um contraponto ao lado que Stanislavski criticou: o das técnicas do espelho. Se as observarmos de perto, veremos que não é tão anti-interiorização quanto se possa supor.

 

***

 

O ator, dramaturgo e pedagogo italiano Gaetano Gattinelli, em “A arte de representar: Manual”, para uso por estudantes de teatro e música (***), de 1876, faz referência a uma pesquisa sobre mecânica psicológica do personagem externado pela gestualidade. Trata-se de uma fonte teórica particular que também contribuiu para a criação do clichê de estudar papéis diante de um espelho.

 

O debate do livro, que permeou todo o século XIX, versa sobre a maneira pela qual o ator é capaz de aparecer nesse palco em sua primeira “entrada” com uma “atitude” – a qual chamavam de “postura” do corpo. Gattinelli sugere um exercício que responde a uma necessidade do ator no limiar de seu ingresso em cena com o fim de assumir a expressão imediata da personagem. Seus conselhos sugerem um agente real, o corpo, movido preparatoriamente diante do espelho do camarim. Com tal ponto de vista baseado na virtualidade da imagem ao espelho, recomendou a criação de um imaginário concentrado em expressões faciais que quase excluíam o resto do corpo.

 

Para o ator, o problema seria inerente à “entrada” e “saída” da personagem – se é que nele se entra ou dele se sai. Mas quem conhece o que acontece num palco, sabe que entramos numa concepção mental construída conjuntamente com o público presente no espaço coincidido com o edifício teatral ou praça, ou quarto, ou tapetinho, ou o que elegermos. Uma construção estética eletiva que, diferenciada pela construção da ficção, é imitadora – reprodutiva ou não – do real. Em geral, chamamos o lugar central da representação de “palco”. Este nos leva a um lugar mental.

 

***

 

Anotei o que me foi referido sobre essa passagem. Era mais ou menos assim: “Como expressar totalmente a aparência da emoção da personagem no instante em que você entra em cena? Como expressar visualmente o que você sente por dentro, mas que, enquanto texto, é somente uma palavra a ser dita? Com uma forma quase mecânica ou sistema adotado no camarim para focar o caráter da pessoa que deve representar no palco, e é a maneira que eu mostro. Começo por a estudar o rosto, interpretando a personagem diante do espelho. Apodero-me da emoção e da situação como se fossem minhas e sinto não poder mais fazer qualquer coisa contraria a elas. Animo-as gradualmente até expressarem os conceitos mais salientes e adquirir total transparência sobre o sentimento da personagem; tudo a ponto de não mais conter o gesto dos braços, determino o jogo dos músculos. Sempre diante do espelho.”

 

Este exemplo é dos tempos da atriz Eleonora Duse (1858-1924); mas há gente de teatro mais próxima a nós, como o napolitano Eduardo De Filippo (1900-1984) que, no procedimento de criação corporal de suas interpretações (foi também um dos maiores dramaturgos italianos) usava o mesmo método. Ouvi isso de seu do sobrinho, Luca De Filippo (1948), de quem era um frequente espectador.

 

***

 

Anos mais tarde, comprovei a eficácia daquela lógica ao atuar no shakespeariano “Timão de Atenas” ao lado de Renato Borghi, sob a direção de Élcio Nogueira Seixas e Luciana Borghi. Passei a utilizar (realmente) a cadeira de rodas durante a montagem. A imagem do rosto da minha personagem de Apemanto foi encaixada no corpo de Mauricio; progressivamente, foram excluídos os movimentos deambulatórios das pernas e a voz foi sobreutilizada. A exclusão do movimento natural do meu corpo e a obrigação de trabalhar somente a expressão da face tornou-se força poderosíssima. A energia do ator não deu oportunidade às expressões da personagem de vazar através de gestos do resto do corpo. Acabou automaticamente canalizada para o rosto, que adquiriu um valor simbólico altamente expressivo.

 

***

 

Gattinelli antecipou de um século e meio a dialética do princípio de evitar o desperdício expressivo em vantagem do emprego de um esforço mínimo; de conseguir expressão máxima com o mínimo de energia. Essa oposição entre a força que empurra a ação à força da estrita imobilidade do corpo (mover quase apenas a face) traduz-se numa multiplicação da expressividade. Ocorre quando o ator-bailarino-intérprete se expressa através de apenas uma parte do corpo: face, olhos, mãos, mas também os pés, braços, costas.

 

No exercício de camarim, sugere, contrariamente, o máximo uso de energia para obter um resultado mínimo para, em seguida, concentrar tudo num único ponto. A abordagem trabalha o corpo na criação de outro organismo que brota, portanto, de uma massa real e não por sua transformação abstrata. A titulo de conclusão, citemos o que relata o ator-diretor italiano contemporâneo Sandro Lombardi (em “Anos felizes, realidade e memória”): “(…) contra todas as regras, de costas voltadas ao público, acho que já nada sentia: a tensão caiu em um aparente “nada faça”. Informação e presença máximas com ação mínima. Parecia encarnar um dos preceitos do teatro kabuki, que também Grotowski recomendava: sempre chamar o ator [grifo meu] para mobilizar todas as energias, sobretudo se ele requer ou precisa “ser” uma imobilidade e ausência.”

 

O corpo do ator é efeito teatral vivo, concretamente luminoso e literariamente morto, principalmente na estaticidade do silêncio.

 

 

(*) Eugênio Chamanski Kuznetsov, russo. Depois de atuar em Moscou, muda-se para o Brasil em 1926, onde dedica-se ao comércio. Só em 1951, a convite de Ziembinski, volta ao teatro e entra para o elenco da peça “Paiol Velho”, de Abílio Pereira de Almeida, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Participa de várias montagens do TBC, como “Seis Personagens à Procura de Um Autor”, de Luigi Pirandello, com direção de Adolfo Celi; “Convite ao Baile”, de Jean Anouilh, dirigido por Luciano Salce; “A Casa de Chá do Luar de Agosto”, de John Patrick, com direção de Maurice Vaneau; e “Os Interesses Criados”, de Jacinto Benavente, direção de Alberto D’Aversa. Paralelamente a esses trabalhos, assina a direção de “Manequim”, de Henrique Pongetti, produção do Teatro Popular de Arte (TPA), com Maria Della Costa, atua em “Desejo”, de Eugene O’Neill, em 1953, e “O Canto da Cotovia”, de Jean Anouilh, direção de Gianni Ratto, em 1954, inaugurando o Teatro Maria Della Costa. Em 1958, passa a fazer parte do Teatro de Arena, nas montagens de “Eles Não Usam Black-Tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de José Renato e “Gimba”, De Guarnieri dirigido por Flávio Rangel. Depois de atuar em “A Visita da Velha Senhora”, de Dürrenmatt, com Cacilda Becker, em 1962, integra o elenco do Teatro Oficina, nas peças “Pequenos Burgueses”, em 1963, e “Os Inimigos”, em 1966, dois textos de Máximo Gorki, dirigidos por José Celso Martinez Corrêa. Volta para a Rússia, onde freqüenta cursos de formação de atores, na Escola Estúdio do Teatro de Arte e na Escola Teatral de Stuchkin, anexa ao Teatro Vakhtangov. Na volta ao Brasil, dá aulas e, em 1967, faz seu último trabalho como ator, em “Marat-Sade”, de Peter Weiss, encenado por Ademar Guerra.

(**) https://www.spescoladeteatro.org.br/noticias/ver.php?id=4024

 

 

(***) http://bit.ly/1aOuezx

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