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Papo com Paroni | Ruzante: autor de falas em música

Publicado em: 07/04/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal a SP Escola de Teatro

 

O italiano Angelo Beolco (Pernumia, 1496 – Padova, 1542), IlRuzante, foi o maior artista de palco do período humanista. Era filho do médico Giovan Francesco Beolco, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Pádua. Teve longa colaboração com um fazendeiro e rico homem de letras, Alvise Cornaro, autor de tratados sobre arquitetura e agricultura. Inventaram um modo de administrar o trabalho no campo racional e humanizado. Revolucionaram o atraso medieval da região veneta. Ao entardecer, no encerramento do trabalho da roça, organizavam representações na sede da fazenda. O Gênio de Beolco criou uma língua popular, o Pavano. Em dialética ao italiano de Dante Alighieri, toca no tragicômico pela perfeita caracterização de personagens rudes e da vida lúgubre do campo de seu tempo. Ator, representava a figura de Ruzante, um malandro que se acredita inteligente mas sempre leva a pior. Sua poética potente foi uma das bases do sucesso da Commedia dell’arte. Não se pode entender os formularii (*), os lazzi (**) e os cannovacci(***) sem conhecer os textos de Beolco.

 

Textos de Ruzante originaram listas de maldições a namoros inconvenientes, listas de suspiros amorosos, listas de desejos proibidos. O coração da Commedia dell’arte, com uma grande diferença: a obra tem empenho social antagônico ao histórico atávico da cultura italiana da diversão “pura”. A Commedia dell’arte era essencialmente um acordo entre profissionais (arte) de palco na ótica do puro entretenimento. Essa prática atingiu o auge justamente em seguida ao período em que Beolco reinventou a sua cultura alta a serviço dos populares, dado o caráter extremamente literário do Renascimento italiano.

 

Temerosa das classes mais baixas, a burguesia não gostava do realismo cômico-lúgubre ruzantiano; seus agricultores, após esse primeiro plano da cena, foram esquecidos. A partir do século XVII, o trabalho de Beolco também acaba no esquecimento, ressurgindo somente no século XX, por mãos de grandes homens de teatro como Dario Fo. Este sempre declarou que o criador das suas famosas técnicas de “grammelot” foi Ruzante. Um trecho do discurso de quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1997:

“Um mestre do palco extraordinário, pouco conhecido… mesmo na Itália. Mas foi, certamente, o maior dramaturgo que a Europa da Renascença teve antes do advento de Shakespeare. Estou falando de Ruzante Beolco, meu maior mestre, junto a Molière, ambos atores-autores, tão ridicularizados pelos principais escritores de seu tempo. Eram especialmente desprezados porque se valiam da cena cotidiana, da alegria e desespero das pessoas comuns, da hipocrisia e da arrogância dos poderosos, da injustiça constante”.

 

***

 

grammelot é uma técnica antiga muito utilizada por Dario Fo quando atuava nas praças de Milão. Assisti a uma dessas inesquecíveis apresentações. Uma delas, Mistério Bufo, tem um trecho em grammelot sobre a tecnologia moderna, acessível no Youtube.

 

Ele colhe a essência da “melodia” da linguagem de uma personagem (cultura, idade, sotaque, classe social). Ao banir a palavra enquanto gramática literária, aumenta o significado da sua inerente musicalidade. Não se trata somente de imitar um japonês ou um caipira. Trata-se de carpir a quintessência dos aspectos dramáticos intrínsecos ao texto e à sua respectiva humanidade.

 

O conhecimento e elaboração dessa técnica, muito mistificada na Itália, é raro no Brasil.  Pode ser realmente útil ao elitizado teatro brasileiro, pois leva um refinamento artesanal altíssimo para uma cultura popular dita “baixa” pela ideia de estilo, coisa morta.

 

***

 

Para se ter uma ideia concreta desse substrato italiano que muito influenciou o nosso teatro, separei três pequenos monólogos de La Betia, adaptados por Alessandra Vannucci, diretora genovesa radicada no Rio de Janeiro (fiz uma pequena revisão).

 

Cena I

Betiasozinha, com balde. Lava.

Ai, cansei. Acordar cedo, ralar, ralar, ralar. E ir pra cama cedo. Sozinha! Me viro. Faço tudo do meu jeito. Eu tenho as minhas galinhas, minhas panelas, meu colchãozinho limpo. Ter marido, pra quê? Por cem gramas de linguiça, ter que levar para casa o porco inteiro. Prefiro ficar sozinha. Tô até meio caída. Eu era de um jeito que mesmo que alguém me apertasse com uma unha grande dessas, não conseguia nem me arranhar, tão firme que eu era. Tudo em cima, toda enxutinha. Precisava ver. Garanto que minha pele brilhava mais que balde de alumínio lustrado. (ri) Já se foi o tempo que eu fui bonita. Mas não tenham pena de mim. Quem tem pena é galinha. Piu, piu, piu.

 

Cena II

Menato sozinho, com verduras.

Puta que o pariu, sou um merda mesmo. Acho que quando eu nasci o diabo estava penteando o rabo. Mundo cão. Deixei tudo pra trás, tomates, berinjelas, mamão, melancias e todas as vaca, porca, galinha, tudo, pra vir pra cá. Tudo por causa dessa mulher. Olha só o estado que ela me deixa! Só pode ser macumba. Deve ter rezado minha cueca pra eu ficar desse jeito. A paudurescência espetando, latejando (toin, toin, toin) só de pensar nela. Abre, abre, abre, mete, mete, mete, lambe, lambe, lambe, chupa, chupa, chupa. (Betia ouve e pergunta: Quem é?) Betia sou eu, Menato. E agora? Nada. Porra nenhuma. (voz de Betia: É você, Menato? Vem cá, meu amigo!)

Menato, meu amigo. Eu, amigo? Que se fodam os amigos, os maridos, a mãe, a vaca, a galinha e a puta que a pariu. Chega, Menato. Juízo. Quer saber? Vou lá e falo: “Olha só o estado que você me deixa. Quer maior prova de amor? Deixa eu te mostrar” e mete, mete, mete, fode, fode, fode.

 

(…)

Cena IV

Ruzante sozinho no poço, acorda, recolhe e coloca tralhas nos bolsos.

Puta de uma vida de merda, ruim. Andei por uma semana inteira. Ninguém me dá carona! Mas pelo menos, voltei! Pra lá não volto mais, não. Nunca mais vou ouvir aquele barulho infernal. Nunca mais vou passar vergonha, fugir de porrada de patrão, nem de polícia. Vou pegar pra mim o que era meu. Comer até explodir (arrota). E cagar, que lá na cidade eu comia tão pouco que nem tinha o que cagar. Sossego da minha vida (anda de costas, enquanto Menato passa). Betia me espera, eu sei. Será que me conhece ainda? (virando) E se não for mais eu, se eu tiver morrido e for meu espírito voltando? Não, espírito não tem fome.

 

***

 

Esta língua é muito próxima do que é o italiano falado pelo seu povo: teatral, musical, dialetal, concreta, de palco. É essa língua de falas musicais que o italiano comum reconhece como sua. Já o italiano da unidade nacional seria o toscano originado de Dante, literário, escrito, oficial, alto. As duas línguas duas se completam. Entretanto, a unidade não foi conseguida com a imposição mussoliniana de falar o Italiano e a proibição do dialeto. Pior: foi conseguida com o italiano artificioso falado na televisão.

 

O mesmo ocorreu na Espanha franquista. Ou no Brasil da ditadura militar. A semelhança, não coincidência: a literalidade televisiva é inautêntica e grassa nas artes performativas brasileiras, populares ou não; um pensamento tendente à apropriação hegemônica de valores “conquistados” enquanto simbologia de ascensão social. Mas a palavra é código que narra a si mesmo, independente, que não vive em oposição à performance, que também se narra. O buraco está  aqui, nem acima nem abaixo do que se convencionou meramente tratar-se de “estilo”. É fato.

 

(*) Formularii eram listas de falas e argumentos que todo ator deveria saber perfeitamente. Ao contrario do falso ensinamento de malandros e charlatões, a improvisação não era o dote mais importante para o ator da commedia dell’ arte, mas a criatividade com que eles sabiam adaptar e concertar seus os formularii individuais a topo tipo de representação, situação cênica ou público.

 

(**) lazzo era uma breve cena em que prevalecia o jogo mímico em si mesmo, projetada para interromper, com colorido de improviso, o curso da trama cênica. Havia repertórios de temas específicos como “medo”, “bondade”, “risada”, “choro” etc.

 

(***) Cannovaccio era a sequência das cenas e da trama do espetáculo, com a sequência de entradas e saídas das personagens, uma espécie de lembrete para o trabalho de concertação das falas e desempenho dos atores. Num mesmo canovaccio poderia existir uma grande variedade de caminhos; cada um dos quais indicava os pontos essenciais do enredo a ser seguido, de acordo com o público ao qual era apresentado. A narração adequava tudo enquanto potencial a ser explorado no momento da performance de palco. Durante a apresentação, os atores consertavam as falas, diálogos e esquetes preestabelecidos de seus repertórios pessoais.

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