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Papo com Paroni | Performances de prosaico fascismo

Publicado em: 10/06/2015 |

Maurício Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro
 
A cultura musical da maternidade no Ocidente atingiu a máxima expressão de beleza da dor no “Stabat Mater”, do veneziano  Antonio Vivaldi (1678-1741). Vale a pena ouvir a versão cantada pelo coro de meninos do Netherlands Bach Collegium, regido por Pieter van Leusink e solado pelo contralto Sytse Buwalda. (https://www.youtube.com/watch?v=zIpbgr9aUEo ). Aproveito a deixa para recomendar o que escrevi sobre dor e drama no Ocidente (https://www.spescoladeteatro.org.br/secoes-sp/ver-papo-com-paroni.php?id=3423  ).
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Diante de tanta magnitude, a antagônica alegria do nascimento faz a beleza nos dar a ilusão de se disperder. Na arte, a alegria tem contornos bem menos definidos que a dor e a comicidade ou, pelo menos, mais frugais. Quem não é um deus – todos nós, os humanos – ou quem estiver longe do poder de chefiar cortes, contenta-se com festa de aniversário. É a nossa performance anual, seja qual for a circunstância em que nos encontremos. É, entretanto, performance antiga, é milenar, segue-nos sem rupturas, diferentemente do que ocorre com o teatro convencional.
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O costume de celebrar a data de nascimento vem da antiguidade pagã. Era o ritual promovido entre os poderosos para proteger os herdeiros das forças do mal e manifestar a esperança em sua boa saúde e segurança. Os egípcios honravam o faraó com uma festa servida de todos os tipos de iguarias. Na Mesopotâmia, o dia de nascimento era essencial para se guiar pelo horóscopo. Gregos, romanos e persas celebravam exclusivamente o aniversário do rei, da divindade e de altos nobres. O “dies natalis” romano era somente para imperadores, deuses ou o especial “Natalis Romae” de 21 de abril, oficialmente a fundação da urbe.
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Mas uma importante virada ideológica moveu o Ocidente da envelhecida “pietas” racionalista para outra, quotidiana e calcada no sentimento de pena. Houve a legitimação metafórica do poder da miséria sacrifical: nas catacumbas paleo-cristãs romanas comemorava-se o “dies natalis” do martírio dos próprios caros. Aquele era o dia em que “nasceram” para a vida eterna. Isso os consolava da própria miséria coroada com a anunciada morte. Um eficacíssimo proselitismo, que os equiparava a deus, a todos, sem exceção.
 
Após dois séculos, na alta Idade Média, uma vez consolidada a conversão do Império ao Catolicismo, os aniversários começaram a ser ignorados por serem tradição pagã. Foram substituídos pela celebração dos onomásticos: os dias com os nomes dos santos católicos e ortodoxos. Isso foi adiante até que Inglaterra, países escandinavos e o norte europeu, as reformas protestantes e anglicana afastaram o Papa do Estado. Criou-se listas de nomes para seus respectivos súditos. No século XVIII, Finlândia e Suécia diversificaram a lista onomástica sacral das leigas. Até que um certo politicamente correto virasse essa espécie de religião de hipocrisia que vemos hoje, era possível batizar alguém como Bjorn (urso), por exemplo. Agora isso poderia “turbar a formação da criança, pelo risco do trauma de um possível bullying”
 
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O aniversário como o conhecemos nasceu no século XIX. Ao que parece, Johann Wolfgang von Goethe comemorou seus últimos aniversários com cumprimentos, bolo, velas, presentes e música. Aristocrática e burguesa no século XIX, a festa de aniversário chegou aos trabalhadores ainda antes do século XX. “Happy birthday to you” foi composto pelas irmãs americanas Janie Mildred Hill e Patty Smith Hill em 1893 para entretenimento de um jardim de infância.
 
Essa celebração é a quintessência da performance legitimada pelo senso comum. Estendida a celebrações de independência de Estados e de identidade de nações, reveste-se de imensa carga política. É um espetáculo disfarçado pela mais prosaica quotidianidade.
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Citemos exemplos menos evidentes como o dia das mães. Este não é o dia da mãe de deus, celebrado por uma procissão. Manifesta-se o dia da mãe leiga, terrena, a que não é virgem, mas não choca o vulgo como a transexual que se põe na cruz de Cristo da Parada do Orgulho Gay. Esta chocou por tratar-se de figurar um deus feito mulher; a homofobia manifestada é somente a ponta do iceberg da intolerância e do fanatismo dos fundamentalistas cristãos brasileiros.

Outro caso emblemático: na Itália fascista de grande tradição eclesiástica, o regime apropriou-se do mito da madona. O “Dia Nacional da Mãe e da Criança” foi celebrado no âmbito da política familiar do governo. A data foi escolhida em conexão com o Natal, em dezembro de 1933. Treinaram as crianças com a saudação fascista ao som de “O hino dos filhos da loba”. No Teatro de Ópera Nacional foram premiadas, com uma viagem a Roma, as 93 mães mais prolíficas da Itália e seu casamento simbólico com o Duce, o “primeiro homem da Itália” . (Aqui, as mães desfilam no teatro Adriano https://www.youtube.com/watch?v=D8nZTdJPW3w ).
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O fascismo e o ridículo acabaram, mas a alegoria é poderosa quando se trata de mãe mediterrânea. Trago viva a lembrança de um colega de escola em Milão cuja mãe, muito bonita, talentosa, escrevia muito bem, mas era diferente de todas as outras: não cozinhava! Um tabu tremendo. Nos fins de semana, todos voltavam para as suas cidades. De retorno, contavam sobre as maravilhas que haviam comido em suas casas. Ele, não. Virou um escritor e muito de seu dissabor foi posto em sua amarga dramaturgia. Considero-o o verdadeiro dramaturgo antifascista. O contorno da “dor” de sua escrita cênica é o mais preciso que conheço do teatro contemporâneo italiano.
 
Parece absurdo – talvez o seja – mas essa ligação é estrutural e profunda, muito mais do que podemos supor.
 
 
Fontes: Jornais La Stampa, La Repubblica, Storia D’Italia, Bíblia

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