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Papo com Paroni | Impossível não performar V

Publicado em: 13/10/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

A palavra torna impossível um palco nu sem metáfora

 

 Encerro esta série de dez artigos com uma questão fundamental para qualquer artista de palco: Gostar ou não gostar do tema a ser encenado? Confundir – subjetiva, ideológica ou emocionalmente – tema com estética da encenação é o caminho mais direto para a mediocridade.

 

Vamos por exemplos concretos. Anna Fierling, a “Māe coragem” de Bertolt Brecht (1898-1956), era uma mascate que lucrava com a guerra a preço da vida de seus próprios filhos. Brecht detestava o que ela representava. Na luta do autor pelo que acreditava justo, ele quis encená-la para ser odiada pelo público. Não a julgava: via-a como um agente histórico. Para se escrever bem sobre a guerra, não é preciso gostar da guerra. Melhor o ódio. Vale a pena observar sob este aspecto a sucessão de gestos da mulher empurrando em lugar dos filhos a carroça no final, após a morte de sua filha. No começo, todos empurravam a carroça, vivazes. Ao final, ela a empurra sozinha por não desistir de exercer seu comércio bélico. Queria denunciar o perverso mecanismo da guerra. Aconteceu que a pena poderosa de Brecht dotou Anna Fierling da força poética daquele ódio… O público até hoje adora a força da personagem. Desconheço atriz que não a queira representar. O que seria dessa obra-prima, cavalo de batalha da atriz Helen Weigel (1900-1971), mulher e sucessora de Brecht no Berliner Ensemble (*), se Brecht se abstivesse de escrevê-la ou dirigi-la por não gostar do que representa? Impossível não associar a imagem final ao próprio carro de Téspis, a lendária metáfora do primeiro ator a declarar seu triunfo sobre a morte.

 

  

  

 

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São fotos e vídeo, do ápice da luta de uma cultura teatral de quem viveu o nazismo na pele e vivia as silenciosas pressões do estalinismo da DDR (**) sobre a direção do Berliner Ensemble. A conjugação harmônica entre o texto de Brecht, sua direção, a precisão mimica do gesto, a sobriedade pragmática da cenografia, a convicção social da atriz, tudo nos leva ao poderoso e jamais reproduzido teatro épico de Brecht. O seu genro, Ekkehard Schall (1930-2005), herdou a excelência genial de Brecht e Helen, e fingia acreditar no ufanismo DDR fajuto da mulher, a medíocre e folclórica Barbara Brecht-Schall (1930-) – foi o melhor ator que já vi atuar (***). Testemunhei o fato em três encontros organizados pela nossa escola de Milão em 1986.

 

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O que fascina os espectadores a ponto de fazer o autor e diretor perderem o controle sobre uma escritura cênica? Quantas verdades e ilusões podem ser construídas com palavras numa cena? As palavras poderiam até preencher o espaço de um palco sem máscaras, atores, cenografia ou música. No entanto, como um vácuo de signos num espelho cruza o olhar do “si” com o “si mesmo”, refletimos no imaginário sonoro o teatro da imaginação humana.

 

Tentemos ler um texto em voz alta, desprovidos da menor ideia de como encená-lo, evitando-lhe a apreciação literária; somente enquanto informação fria. Inevitavelmente, estaremos no território da narração metateatral (pensamento) e da performance do real (leitura da linguagem da representação): um paradoxo puro, no sentido kantiano das categorias. Ou de Diderot. É muito difícil ler um texto sem muita projeção do intelecto. Experimentem analisar qualquer texto de Harold Pinter (1940-2088) ou de Alan Ayckbourn (1939- ) sob essa ótica. A análise será superior a qualquer encenação emotiva dos textos, mas de grande empatia com um eventual público.

 

Em vez disso, constatemos que a maioria dos espetáculos é divertidíssima para os atores e chatíssima para o público: teatro para coleguinhas de “profissão”. (Qual?) Nascem os macetes: precisa ser “político” para ser socialmente útil, precisa ser emotivo para ser importante, precisa ser literário para ser poético, precisa ser chulo para ser divertido.

 

Somos políticos para além de nossas convicções ideológicas. Mas não necessariamente divertidos; para ser divertido, há que suar a camisa sem necessariamente nos divertirmos. Que me perdoem Brecht e Maiakovski, mas o contexto deles era a Revolução Russa, o Nazismo e o Estalinismo. No atual panorama de massificação da ignorância, se apenas nos centrarmos na História, já estaremos em ganho.

 

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As antigas diversões de Anúbis, no Egito, ou do bode, na Grécia, equacionaram a Morte qual metáfora da Vida. Mas ninguém gostava de morrer, nem os mártires; não condiz com o Humano. Sempre houve – e sempre haverá – loucos que gostam de morrer, como as exceções do Império de Dario III, do EI, da exacerbação na droga ao delírio infernal no fanatismo de qualquer matriz. Os antigos gostavam da Vida: Inventaram o ditirambo, a sacanagem embaixo da pele do bode ou vai saber o quê à sombrinha da pirâmide. Nove meses depois, a vida voltava, presente de Dionysos e Anúbis. Querendo ou não aceitar um acordo com a Morte, ela existe e a todos nós ceifará a vigília. Resta-nos somente transformá-la em Vida, via metáfora.

 

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É característica humana ir além da necessidade de procriação no sexo. Nasce o Eros, a tragédia, a comédia; mas também a perseguição homofóbica daquele Levy de arfante respiração e linguajar pseudojurídico de covarde latência. Idem, a figura arrivista do “macho A” Eike Batista. Na exata razão da nossa antipatia, trabalhar com a representação deles aumenta exponencialmente a chance de haver bom teatro. Podemos viver o palco profundamente quando parece ser impossível neutralizar o que se detesta.

 

Isso é muito diferente de banirmos o Belo do palco. Mas utilizá-los para camuflar a escuridão seria cultuar o rasteiro. Rembrandt (1606-1669) utilizou a escuridão para ressaltar a luz e a forma do que pretendia nos comunicar. Cartola (1908-1980) usou a beleza para evidenciar a sua angústia. São duas bússolas precisas.

 

Preciso Me Encontrar:

Deixe-me ir/ Preciso andar/ por aí a procurar/Rir pra não chorar/Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar/ Quero assistir ao sol nascer/ Ver as águas dos rios correr/ Ouvir os pássaros cantar/ Eu quero nascer/ Quero viver/ Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar/ Se alguém por mim perguntar/ Diga que eu só vou voltar/ Depois que me encontrar/ Quero assistir ao sol nascer/ Ver as águas dos rios correr/ Ouvir os pássaros cantar/ Eu quero nascer/ Quero viver/ Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar (…)

 

Estar no palco para falar do que se gosta não é irresponsável, mas está próximo da alegoria do pagode raso, do Club Mediterranée, da alegre excursão da madame vilamadalenosa à periferia. Teatro não admite censura, porém a mediocridade conexa ao raso virou modelo. 

 

A ausência de metáfora na equação teatral é coisa grave. Obriga-nos àquela  alegoria rasa. Melhor buscar a linguagem lírica se fizermos questão de “curtir uma” no palco. Mas no teatro de verdade, é preciso agredir com classe, no sentido literal, “ad gregi” (na direção do rebanho). Ter implicância com algo ou alguém. Aristófanes detonava Sócrates para se divertir, não para destruir. Os que o condenaram à cicuta eram os fanáticos manipulados pelo poder constituído da Polis.

 

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Gosto de pensar num exemplo histórico: A Inglaterra viveu uma complexa e problemática transição sociopolítica do século XVI para o XVII.  Esse foi o contexto mais usado por Shakespeare para conferir dinamismo à representação das contradições humanas que inventou. Em “Hamlet” (1601), o oxímoro (****) supera a mera figura de linguagem poética para tornar-se estrutural da trama, da retórica – e da dinâmica entre pensamentos opostos; espelha a oposição entre os mundos medieval e o renascentista. O espaço da interioridade era embrionário ainda, mas já havia uma luta encarniçada entre velhas crenças e dúvidas sobre a modernidade nascente. Traduzo sob este prisma o seu mais conhecido monólogo:

 

Ser ou não ser é o problema: será mais nobre para uma alma aguentar os desaforos e flechadas do azar ou se armar contra um mar de encrencas e brigar até azerar tudo; nada demais: morrer, dormir. Assim, com o sono, acabar com as angustias e milhares de ofensas já nascidas herdeiras da carne. Aqui está a solução para ser religiosamente desejada: morrer – dormir. Dormir – sonhar.

Acho. 

É, aqui está a encrenca: no sono do morto, qual o sonho que o morto faz… Se o morto fica livre do tumulto da vida? Precisa pensar bem nisso. É esse pensamento que tanto alonga a vida de sofrimento. Quem, deste mundo, vai aguentar, nesta vida, ferroada e insulto, injustiça de opressor, ofensa de soberbo, sofrimento de amor não correspondido, iniquidade da justiça, insolência de poderoso, piada onde merecedor vira vítima de canalha… Se puder se livrar com a simples ponta de um punhal? Quem é que aguenta arrastar essa carga, xingando e suando sob o peso da vida, se não por ter medo do que vem depois da morte – terra desconhecida d’onde nenhum viajante voltou – que paralisa a vontade e nos faz suportar todo os males de agora, em vez de voar para outros que não conhecemos?

Assim a consciência acovarda a gente, a cor natural da determinação se ofusca no verniz doentio e pálido do pensamento e, pela mesma razão, gestos de grande valor e importância desviam de seu caminho. Perdem o nome de ação.

 

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A nudez do palco elisabetano criou mecanismos de ficção que atuavam na “ausência” da encenação. Isso foi o que inaugurou a época moderna, onde qualquer verdade passou a ser relativa ao imaginário, sonoro, no princípio. Mais ainda: encorajou a vida próxima da loucura. Um oximoro por excelência. O sentido de um oxímoro vive no próprio absurdo contido em sua locução, que obriga a mente a criar uma metáfora para entendê-la. Nunca saberemos se Shakespeare gostava ou não de oximoros. Mas sabemos que o público se divertia – ainda hoje o faz – com mortos-vivos como o Rei Hamlet, loucuras lúcidas com as do Príncipe Hamlet, o leito lutuoso e quente como o de sua gélida mãe, pecadoras inocentes como Ofélia, coveiros vivazes como a galeria de tristes lembranças evocada pelo crânio vazio de Yorik.

 

Jamais encontraremos no teatro contemporâneo qualquer solução de palco sem evitarmos as falsidades constitutivas da encenação das palavras enquanto instrumento criativo de pensamento. É muito comum deixar-se confundir pelas generalizações e imprecisões que a encenação traz consigo. Bom teatro é teatro simples e necessita de concretude, metáfora e alteridade.

 

(*) Berliner Ensemble é uma companhia fundada por Bertolt Brecht e Helene Weigel em 1949. Suas primeiras apresentações foram no Deutsches Theater. Apenas em 1954 o Berliner consegue mudar-se para o Theater am Schiffbauerdamm. Este edifício fora importante na vida teatral alemã pré-Nazista pela qualidade de Max Reinhardt, seu diretor judeu-austríaco entre 1903 a 1933 e pelas estreias de importantes peças do início da carreira de Bertolt Brecht: Ópera dos Três Vinténs (1928), Happy End (1929) e A Mãe (Die Mutter) (1932). Cada produção era documentada com centenas de fotos para um Modellbuch (cadernos de direção). Brecht instituiu o dramaturg e não escreveu nenhum texto para o Berliner Ensemble, mas remontou suas peças Mãe Coragem e seus Filhos em 1949, Círculo de Giz Caucasiano e A Vida de Galileu. Em 1992, depois da queda do Muro, a prefeitura de Berlim indicou cinco diretores gerais: Peter Zadek, Peter Palitsch, Heiner Müller, Fritz Marquardt e Matthias Langhoff. Em 1993 a companhia foi privatizada, mas continua a receber subsídios federais. Muitos críticos apontam o sucesso mundial do Berliner devido à apresentação feita em Paris com seu espetáculo Mãe Coragem em1954.

 

(**) Deutsche Demokratische Republik – DDR República Democrática Alemã (RDA), a Alemanha Oriental, Estado criado em 1949 no território da Zona de ocupação soviética, uma das Zonas ocupadas pelos Aliados na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, quando o território alemão foi repartido entre os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e a União Soviética. Enquanto a zona soviética deu origem à RDA, a junção das outras três deu origem à República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental.

 

(***) En passant: Heiner Muller, o preterido em relação a outros queridinhos da direção artística do teatro, seguia Brecht e não a filha. Bem retratada na figura de Virginia, de “A vida de Galileu”.

 

(****) Oxímoro (do grego ὀξύμωρον, composto de ὀξύς “agudo, aguçado” e μωρός “estúpido”) é uma figura de linguagem que relaciona, numa mesma expressão ou locução, palavras expressivas de conceitos contrários. A Wikipédia cita este soneto de Luís de Camões construído com oxímoros:

 

Amor é fogo que arde sem se ver/ É ferida que dói e não se sente/ É um contentamento descontente/ É dor que desatina sem doer / É um não querer mais que bem querer / É solitário andar por entre a gente/ É nunca contentar-se de contente/ É cuidar que se ganha em se perder/ É querer estar preso por vontade/ É servir a quem vence, o vencedor/ É ter com quem nos mata lealdade./ Mas como causar pode seu favor/ Nos corações humanos amizade, / Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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