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Papo com Paroni | Impossível não performar IV

Publicado em: 06/10/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Aula-Máquina num Fiorde de Ibsen – Parte Segunda

 

Continuaçāo do artigo anterior (*)

Texto, pretexto, subtexto e contexto

[Conjuguei esta geografia do palco com a geografia emocional que havia terminado de trabalhar em Glasgow, na Royal Scottish Academy of Music and Drama, nos dois meses anteriores a Volda. Havia encenado “Gigantes da montanha”, de Luigi Pirandello, para o festival de dramaturgia italiana, com elenco e prduçāo escocesas. Estava fresco na memória o desafio de criar com os britânicos uma expressão da sicilianidade de Pirandello sem sotaques rasteiros e tarantelas. A angústia do documento e da estraneidade a um país, além da caravana mambembe da companhia da protagonista eram as chaves. Conjuguei entre si o círculo, as caminhadas pelo território, as memórias familiares, o controle de passaportes e a inspiração de exercícios de Graham Eatough e David Greg, meus sócios no Suspect Culture à experiência que segue. Até hoje sinto um buraco dentro de mim por dever retornar à Itália sem transformar a pesquisa num espetáculo.]

 

Paroni com a turma do Liceu Universitário de Volda 

 

Contexto

Aquele trabalho anterior contribuiu para criar o contexto para a atuação. Mas não era o mesmo que Stanislavski subentendia como foco de contexto. Não avançávamos pela psicologia, mas via mapas concretos, vinculados ao exercício das regras. Todos usavam os mapas que tinham criado durante os exercícios. Cada ator entrava no círculo orientando-se por seu mapa. Paravam na marca por onde tinham entrado, num movimento permanente, sem as emoções, de onde responderiam a perguntas da plateia. Como no exercício do círculo, as perguntas podiam ser direcionadas tanto para a pessoa como para o papel.

Uma pessoa começava a caminhar, seguida gradualmente pelos outros. Eles foram orientados a conversar em voz baixa ao se encontrarem no palco, como se tivessem se avistado de forma aleatória na cidade. Criamos uma pequena comunidade no círculo. Era como um universo em miniatura, que trabalhava de acordo com regras próprias. Conversas íntimas ocorreram, enquanto indivíduos respondiam a perguntas da plateia pelo palco, muitas vezes ao mesmo tempo.

 

Documento de transporte ou passaporte

Esse exercício específico estava diretamente ligado à vida do ator em algumas de suas variações. Tornou-se o ponto de partida para um segmento importante da máquina de teatro: o controle de passaporte. Partimos do pressuposto de que o palco era um mapa da Europa.

Os atores foram convidados a [nessa ordem]:

– Irem para onde nasceram;

– Irem para onde a mãe nasceu;

– Irem para onde a avó nasceu;

– Irem para onde a tetravó nasceu;

– Imaginá-la no trabalho;

– Realizarem um movimento e um som ligados àquele imaginário.

Estavam criados os passaportes. Guardavam-nos na mente.

 

O ponto seguinte foi imaginar o palco como um mapa do mundo.

Os atores foram convidados a [nessa ordem]:

– Irem para onde mais gostariam de viver e fechar os olhos;

– Imaginarem-se na situação mais agradável possível;

– Imaginarem-se na situação mais desconfortável possível;

Fazer um movimento e um som ligados a cada uma dessas imagens. Fazê-los com uma gramática que tivesse um início e um fim. Estavam criadas mais duas emoções-documento.

Mais um movimento-passaporte:

– Todos deitavam-se ao chão.

– Imaginava-se uma foto do papel como Nora, Thorvald ou Eyolf, num ambiente agradável e, em seguida, numa situação desagradável.

– Criava-se um movimento e um som a eles conjugado.

– Levantava-se, experimentava-se e mostrava-se o movimento em repetição rítmica, mantidos fechados os olhos.

Tinhamos quatro emoções-documentos.

 

Emoção-documento

Num quadro de 32 emoções básicas, poderíamos ter criado um movimento ligado a cada uma delas para a nossa máquina de teatro. Ao criarmos um movimento, facilitamos a comunicação da sua memória. Numa fase posterior, juntaríamos as peças do quebra-cabeças na formação de um universo – um universo pós-moderno – que contivesse todos os segmentos.

 

Henrik Ibsen e o controle de passaportes

Mauricio pediu a Franz para trocar o papel de Thorvald pelo de Henrik Ibsen. Ele foi orientado a seguir no palco o mapa de seu percurso feito no território e responder às perguntas como Franz ou Henrik Ibsen. Depois disso, a ele foi dado o papel de policial no controle de passaportes do aeroporto Gardermoen. Nossa sala teatral tem grandes janelas e uma porta virada a sul. A[o guarda de fronteira] Ibsen  foi dada uma cadeira diante da janela; todos tinham que vir do lado de fora e mostrar um dos seus movimentos/passaportes para entrar. O passaporte deveria ser um documento de circulação a partir do mapa, da tatara-tatara-avó no trabalho, ou o documento a partir de qualquer emoção/situação o mais agradável ou o mais desagradável possíveis. Ibsen era soberano para decidir quem seria ou não autorizado a entrar e que foi negado. Quem teve a entrada negada deveria voltar para a fila em tentativa de passar no controle. Alguns tiveram que tentar muitas vezes, outros apenas uma vez.

Mauricio referiu-se a Ibsen como uma etiqueta não necessariamente em contato com o mundo real. Diz-se que é preciso mais de uma geração para reconhecer o sabor de um bom vinho. Mauricio estava curioso sobre como seria trabalhar com Ibsen na Noruega. Conhecendo bem ou não a tradição teatral de Ibsen, é absolutamente necessário que o teatro esteja em estreito contato com as nossas vidas. Responder seguidamente a perguntas enquanto Nora ou Kristine criava uma conexão entre esses dois mundos. Ao mesmo tempo, os documentos de acompanhamento e emoção serviam como metáforas para nossas vidas.

 

Bilhetes no palco

A extensão seguinte foi a criação de recados em bilhetes manuscritos dispostos no palco. Os bilhetes eram nominativos e pessoais. Outros bilhetes com regras dos personagens do exercício 2 foram colocados ao léu. No palco, os atores seguiam o simulacro de seus percursos feitos no território antes do controle de passaportes utilizando seus mapas. Cada vez que topassem com um bilhete no chão, dirigiam-se à platéia para lê-los em voz alta. Quando duas pessoas se encontravam, podiam segredar. Se se tocassem pessoal e emocionalmente, deveriam fazer um movimento/passaporte e interromper a caminhada para responder às perguntas da plateia. Os recados  postos no palco aumentavam: Eram passagens de “Casa de bonecas” ou “Pequeno Eyolf”. Depois, escreviam comentários positivos e negativos sobre a Noruega, e os declaravam a Ibsen ao passarem por ele na fronteira.

Todos esses exercícios eram  parte da criação de um universo; de um contexto como lugar mental usado como preparativo performático, cujas ações criavam uma narrativa dramática. O objetivo do trabalho era construir o papel das personagens e criar a dramaturgia de uma performance ao mesmo tempo. Tudo poderia até acabar numa atuação ibseniana tradicional, mas depois de um processo em que soubéssemos o porquê, comentou Mauricio!

 

A máquina de teatro – Construir a atuação como um concertação de jazz

Encenação

No quarto dia, encenou-se uma performance usando todos os elementos. Começou com Ibsen:

a) Entrava Ibsen, vindo do “exterior”, abre as cortinas [da grande janela que dava para o Fiorde]; sentava-se na cadeira de guarda de fronteira.

b) Os atores mostravam a Ibsen, no controle de passaporte, seus documentos/emoção. Este rejeitava ou aprovava a entrada de acordo com sua vontade.

c) Quem era autorizado a entrar reproduzia no palco a própria rota feita no território; realizava seu movimentos/emoção, agradáveis ou desagradáveis; ao depararem com bilhetes, lia os recados neles contidos em voz alta e respondia a perguntas ligadas a seus papéis; durante todo o ensaio, estabeleciam uma conversa privada ao depararem-se entre si no percurso de palco.

d) Após o percurso, sentavam-se ao redor do palco e faziam uma pergunta enqunto público para alguém que caminhava; iniciavam então uma nova rodada.

e) De vez em quando, Ibsen deixava o seu lugar no controle de passaportes e, como os outros, caminhava o simulacro de rota feito no território. A fila no controle de passaporte, então, deveria esperar.

Um sistema de ações

A ideia principal criou um sistema circular de ações que – metaforicamente – representava uma espécie de paisagem. Para melhorar as ações, podia-se construir a qualquer momento, juntuando cenas, novos textos, falas e comentários dos exercícios ao sistema. Ibsen era o centro daquele sistema. Podiam construir mais ainda, centrados no trabalho tradicional de palco.

Aquele tipo de desconstrução estava inspirado no teatro japonês Noh e em diretores como Robert Wilson e Heiner Müller. Talvez, mais do que tudo, Mauricio o tenha aprendido com Tadeusz Kantor. Ele foi o primeiro a introduzir a ideia do público como uma parte do sistema [de cenas], numa ação de formas repetidas. “Como ator se é servo da ação”, declarou, referindo-se ao livro “A presença do Ator”, de Jo Chaikin. Considerava esse livro uma importante fonte de inspiração para o trabalho de ator. O objetivo foi criar um contexto para trabalhar a atuação. Talvez depois de um ano nos deparássemos com um desempenho tradicional de Ibsen. Mas teríamos sabido a razão daquilo!

[Para se ter noçāo da força de credibildade de um contexto no ambiente e no território: Magnus, um dos participantes, tinha como regra perguntar a todas as pessoas de camisa branca que encontrasse se elas sabiam que o menino Eyolf havia morrido afogado no fiorde porque, deficiente físico, não podia nadar. Em uma hora, havia um helicoóptero da Guarda Costeira vasculhando a área procurando o cadáver da criança. Ficamos em silêncio para evitar problemas com as autoridades.]

 

Quatro estágios

A [nossa] máquina teatral teve quatro estágios:

1) No palco – com os movimentos, observações, respostas a perguntas e conversas

2) De fora – mostrar movimento/passaporte para entrar [na sala teatral/Reino da Noruega]

3) De lado [do palco] – observar e fazer perguntas

4) Conversa com Ibsen na cadeira [da polícia de fronteira]

 

Gramática

“Chegamos a 70% de uma gramática para a nossa máquina de teatro”, disse Mauricio. “É muito importante trabalhar a gramática na performance. A gramática é o motor da atuação; são as regras do seu movimento. Trata-se de um sistema de signos. É importante transmitir o entendimento dessa gramática para o público. Nos primeiros dez minutos do espetáculo, é preciso que o diretor forneça ao público uma chave para decodificar a gramática da encenação. O autor Henrik Ibsen descreveu frequentemente o conflito entre o homem e a moral. Que tipo de Nora Ingvild interpretará? Qual será a sua regra? Ibsen inventou a personalidade moderna de várias maneiras: por exemplo, as pessoas vistas à luz de seu patrimônio moral. Poderíamos também ter integrado 32 emoções/documentos diferentes em nossa máquina teatro”, continuou.

 

Revolução

Nossa máquina de teatro acabou por ser como uma “concertação” jazzística. Possuía dramaturgia e suas cenas fixas, ao mesmo tempo em que nos trazia constantemente novas variações, como improvisações de jazz. Foi também interessante e às vezes muito divertido de ver.

Entrementes, algo inesperado aconteceu: houve uma revolução na máquina de teatro! [revoltada com a espera abusiva] De repente, Nina, enquanto Nina ou Nora, instalou-se no controle de passaportes de Ibsen! Isso começou uma revolta. Enquanto ele havia ido até o outro lado do palco, Nina admitia ou negava entrada no Reino da Noruega às pessoas como ela bem entendesse. Quando voltou, houve muita discussāo e vimos Ibsen perder o controle da máquina de teatro. O que mais poderia ter acontecido a continuar o laboratório, só podemos fantasiar sobre. “Um novo drama vai surgir quando o sistema não funcionar mais”, disse o diretor. Nossos quatro educativos e inspiradores dias com Mauricio Paroni tinham acabado – mas algo ou alguém tinha realmente tocado Ibsen! 

Você pode descobrir mais sobre a formação de Mauricio Paroni no artigo Mauricio, Stanistavskij e Grotowskij – uma comparação.

Marit Ulvund, do Departamento de Drama, Faculdade de Teatro de Volda, agosto de 2003

 

BIBLIOGRAFIA

Brockett, Oscar; History of the Theatre Fifth edition, Allyn and Bacon 1987

Gatland, Jan Olav; Teaterteori – klassiske og moderne tekster, Pax forlag 1998

Kobialka, Michael:  Paper presented 1990, University of Minnesota – Theatre

5950  East European Avant-Garde drama

Nygård; Jon Teaterhistoriedel 3, Spillerom 1996

Schechner, Richard; Jerzy Grotowskij 1933-1999 Article in The Drama Review,

Summer 99 Vol 43 Issue2.

Stanislavskij, Stanislav: En skådespelares arbete med sig själv Raben og

Sjögren 1977

Paroni, Mauricio; Notater fra workshop i Volda – mai 2003.

 

 

(*) Há muito mérito no esforço em ser artesão antes de ser artista. Um artesão não é necessariamente um artista, mas um bom artista tem que ser artesão, mesmo que simplesmente esforçado. Um artista sem artesanato é necessariamente um mau artista. Maus artistas afastam as pessoas da arte. Se, além disso, forem “gênios revolucionários” ou “heróis da tradição”, a desgraça – de todos – é inominável. Que se enterrem as genialidades heróicas em paz, nos bares, motéis e academias. Ao largo gente de anel de formatura no dedo mínimo ou autodidatas de peito estufado.

Louvo, vice-versa, os grandes artesãos que foram meus mestres – alguns deles geniais. Simples e concretos, exigiam exercício do artesanato como conditio sine qua non para poderem ensinar e assegurar democracia da arte. Assim que deparei com a raridade daquele conhecimento, o meu maior objetivo político passou a ser o de compartilhá-lo. O que aqui veiculo é suado e concreto, portanto politico, além de pessoal. Escrevo nesta seção por não me conformar com o dano formativo da ditadura militar e a consequente ideologia rançosa da supremacia do autóctone: a maldição autoritária da qual se originou e finge combater.

Longe de ser um acúmulo conceitual, a sua origem jaz no exercício pluridecenal da profissão, após um longo e sacrificado aprendizado. Sem dinheiro, longe de casa, tive a sorte de encontrar nos anos 1980 os melhores mestres que alguém poderia desejar, além de ter trabalhado com alguns deles na década seguinte. Ministrei cursos formativos em escolas mundo afora e algumas pessoas fizeram diários e anotações. Uma delas era Marit Ulvund, do Liceu Universitário de Volda (Høgskulen i Volda), cidadezinha incrustrada num fiorde do centro-oeste da Noruega.

A atividade era baseada em Henrik Ibsen (1828-1906). Foi um privilégio pesquisar e ensaiar o autor numa sala com uma grandíssima janela de vidro e uma porta que davam para o fiorde. Era 2003. Desmaiava regularmente após os ensaios. Eu não sabia, mas nutria no mediastino um agressivíssimo linfoma já no estágio III-A. Provavelmente, estava a poucos meses da morte. Diante do terrível diagnóstico, a vontade de passar adiante o conhecimento adquirido deu-me forças para lutar pela vida. Vencida a doença, ainda reluto em divulgar o artigo de Marit, pela dimensão pessoal do que aconteceu naquele fiorde. Mas é estúpido trancar o patrimônio profissional na vaidade de uma carreira. Caixão é uma mobília sem gavetas ou clima para lembranças. Pois bem? num viés ibseniano, confesso ser este o lugar e o momento de publicar a versão do artigo em português. Por tratar de atuação e performatividade, vem, em três partes, encerrar esta série sobre o tema (***). Ainda que tenha dimensão pessoal sem que algo além da “confissão” acima lhe seja acrescentado, fiz comentários circunstanciais entre colchetes para maior clareza e agilidade na leitura.

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