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Papo com Paroni | Esqueletos no armário

Publicado em: 10/03/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

As línguas ameríndias são praticamente desconhecidas, como todas as línguas dos povos exterminados na História. A América pré-colombiana foi aniquilada. Resistem quéchuas e outros poucos cacos de civilizações dizimadas. Assim foi com o Etrusco; não fosse no século XX, assim teria sido com o Iídiche.

 

Ao pesquisar para um espetáculo em Lisboa sobre os 500 anos da “descoberta” da América, lembro-me de ter lido “História de lince”, do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Originalíssimo, a chave do livro não é qualquer “descoberta”, mas a invasão e aniquilação dos povos e valores indígenas: o branco e o índio seriam gêmeos? Sim, gêmeos desiguais: um aniquila o outro.

 

As culturas aniquiladas acabam mitificadas pela própria culpa dos seus aniquiladores. A América pré-colombiana não foi exceção. Mas a agudeza intelectual de Lévi-Strauss desenha os mitos dos ameríndios, do Norte e do Sul, como preconizadores de uma extraordinária abertura para o outro, para o diverso. Os ameríndios não eram santos, mas aquelas culturas não concebiam existir sem a ideia mítica de outras, pois os próprios limites das diferenças lhes delineariam forma e valores. Os brancos já estavam incorporados na mitologia dos povos pré-colombianos antes da chegada dos cristãos. No exemplo mais incisivo, o mito civilizador Quetzalcoatl profetizava a chegada, pelo mar, e do lado do Sol Nascente, de seres a ele mesmo semelhantes: homens grandes, brancos e de barba longa.

 

Entraram em conflito. Entre tantos massacres, 20 mil ameríndios armados paralisaram-se diante de um punhado de espanhóis no Peru – talvez porque o mitologizado invasor fosse visto enquanto divindade desaparecida de advento esperado. Lévi-Strauss narra que o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) lamentou que a América não tenha sido conquistada no tempo da Grécia ou de Roma, quando as armas dos respectivos povos seriam comparáveis: o contato não teria resultado no extermínio dos mais fracos.

 

Logo no começo, Colombo classificou como “índios” os autóctones. O mais provável é que fossem descendentes de mongóis que atravessaram, há cerca de 30 mil anos, o estreito de Bering, quando os continentes ainda eram ligados. Ainda há muitas discussões a respeito, mas é certo que foram vítimas de um genocídio tão gigantesco que o emprego de uma linguagem politicamente correta aqui seria o cúmulo do racismo. “Tristes trópicos”, do mesmo Lévi-Strauss, principia narrando a tragédia de já não mais se poder saber nada disso com certeza: assim que o branco toca a civilização ameríndia, esta se destrói, por sanha e por incapacidade linguística e estrutural.

 

Para ir direto ao argumento, sugiro a entrevista de Lévi-Strauss realizada na Universidade de Campinas, disponível no Youtube – as imagens são de Jorge Bodanzky e Alain Salomon.

 

***

 

Entretanto, tentemos vislumbrar alguma coisa que nos sirva a lamentar um pouco menos a sanha predadora: uma linha auxiliar da imensa chacina empreendida pela colonização das Américas foi um projeto educativo. Ajudou na limpeza étnica dos índios, mas pelo menos trouxe escolas.

 

No percurso histórico brasileiro, Jesuítas foram os nossos primeiros educadores; aprenderam os principais idiomas das cerca de seis mil etnias nativas, até os gramatizarem com referência no Português. Acabaram por inventar as primeiras línguas francas do Brasil: duas Línguas GeraisNheengatu Amazônico e Nheengatu Paulista (*). Os Jesuítas se com essa Língua Brasílica, baseada no Tupinambá, a variante Tupi mais falada da costa no Nordeste ao Sudeste. O idioma foi generalizado nos séculos XVII e XVIII, quando os escravos negros também as adotaram para a comunicação com os diferentes grupos de índios. Essa unidade linguística, articulada pelos jesuítas, completou-se com a substituição do Nheengatu pelo Português, quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Brasil, em 1759. Déspota iluminado, paradoxalmente Pombal não ofereceu qualquer alternativa educativa à Colônia.

 

Os Jesuítas foram sumariamente despachados nas naus de regresso à Europa. Restou a uma elite colonial o envio de seus filhos à Metrópole. Havia franciscanos e outras ordens menores que tentaram cobrir a lacuna, mas a desassistência crônica começou a ser parcialmente remediada somente com a vinda da Família Real Portuguesa, em 1808.

 

No contexto brasileiro do século XVII, quem não era branco, não era gente. Um índio era um animal, mas alguma coisa para um jesuíta, ainda que fossem educados e catequizados somente para racionalizar e desenvolver o escravagismo da Metrópole numa servidão mais lucrativa. Como o próprio cristianismo fez na Europa greco-romana: transformou a escravidão em servidão. E não adianta jogar a culpa nos portugueses. Nem sempre, na História, o que parece, é: na alvorada do Brasil independente, Dom Pedro I impediu a libertação dos negros projetada por José Bonifácio. O Brasil se coloniza a si mesmo desde o começo de seu Estado independente. Muitos agentes sociais passam uma imagem revolucionária de si quando são exatamente o contrário.

 

(*) O Nheengatu (ñe’engatu = língua’boa) ainda é falado por cerca de 8 mil pessoas nas margens do Rio Negro, no noroeste do Amazonas, na Colômbia e na Venezuela. Já a língua geral paulista ou Tupi do Sul estava baseada no dialeto Tupi falado na região de São Vicente e do Tietê. No século XVII, esta língua chegou a ser falada em São Paulo e regiões vizinhas. Extinguiu-se no século XVIII.

 

Fontes consultadas:

Documentário na TV Senado “Missões Jesuíticas”, entrevista com o historiador Edgard Leite sobre as ações jesuíticas) – http://www.youtube.com/watch?v=KzQVj65OqPM

“A história de Lince, mito dos gêmeos desiguais”, artigo de Sérgio Medeiros em O Estado de S. Paulo; 22 de novembro de 2008

“História de lince”, Claude Levi – Strauss, 2006, Edições Asa, Portugal

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