* Por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro
A procura por uma iconografia imediatamente definidora da infância pode ser um bom pretexto para refletir artisticamente a problemática do criancismo – o preconceito contra a infância. Ao revirar memória e livros com o objetivo de encontrar uma representação sintética, percebi a dificuldade. Se é difícil encontrar a ícone, é mais difícil definir o preconceito a ela adjacente. O livro de Elisabeth Young, “Criancismo: para enfrentar o preconceito contra crianças” (“Childism: confronting prejudice against children”), é definidor do conceito, mas não fornece representação – nem deveria. Essa é uma das funções da arte, num tempo em que nós, artistas, lamentamos a falta de nossa utilidade, para além do estritamente social. A imagem oficial de infância da ONU é eloquente, mas em favor de outra coisa: a maternidade. O símbolo tem mais a ver com o mundo adulto. Onde encontrar uma representação do que a infância é e só ela é?
O leitor faça por si essa viagem apaixonante, mas não me furto a narrar um breve percurso pessoal dessa procura.
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“A pessoa não é nem coisa nem substância ou objeto… A pessoa é sempre dada como uma executora de atos intencionais e coletados em uma unidade de sentido” (Heidegger, “Ser e tempo”)
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Ao fim da Segunda Guerra Mundial, era hora de reconstruir o mundo de maneira a evitar os terríveis erros do passado. Camus narra, em “O mito de Sisifo”, a busca pelo sentido da existência enquanto fadados a sofrer o absurdo da morte. Tendo resistido contra os alemães, Jean Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), ironicamente inspirados pelo alemão Martin Heidegger (1889 – 1976) e o fenomenologista austríaco Edmund Husserl (1859 – 1938), viram o crescimento do ser como fundamental para a liberdade enquanto valor humano e político. (*)
Nos dois casos, a infância necessariamente entrava em jogo, mas não era narrada. Mesmo assim, em sua obra, Simone de Beauvoir explicou bem a questão da formação: o duplo do menino seria o seu pênis; o da menina, a boneca. O menino vive o medo da castração, mas o pênis é visível e pode ser pego, dominado, administrado. Consequentemente, a brincadeira por ele induzida seria aventurar-se no mundo para conquistar e realizar o eu. Já a menina tem um brinquedo interior, um mistério que pode intuir mas não visualizar ou dominar fisicamente a representação objetiva. Resta-lhe a metáfora da boneca, de imediato presenteada em sua primeira infância. A boneca implica o ser para o outro. Boneca, que só parcialmente é uma forma de arte, mas jamais de conquista, sub-repticiamente sem luta ou escolha existencial, qual dádiva do mundo que rodeia a menina. Não é por acaso que o gênero teatral por excelência da boneca é o teatro de marionetes ou de fantoches. Mas este define perfeitamente a impotência do eu diante do destino e do mundo, mais ainda que o drama e a tragédia do antagonismo entre o ser humano e seu destino individual. Uma definição que sintetize perfeitamente a infância não há, aqui.
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A procura continuava… Ao digitar a palavra infância nos motores de pesquisa da internet, achou-se muita natividade, muito presépio, muito anjo, muito “ser para o outro”, o mote fundamental do Cristianismo. E, no Ocidente, tudo ligado à maternidade. Procurei um arremedo de linha divisória entre Oriente e Ocidente no Mediterrâneo Oriental. Havia um indício inquietante na pintura pagã… Principalmente entre os egípcios, a estatura definia a importância social e política da figura representada. Mas dimensão não define infância. A linha sucumbiu diante da poderosa misericórdia de renúncia diante da criança, característica de Isis, a Mãe Mediterrânea. Arquétipo da mãe que intercede, boazinha, contra o severo castigo do pai, essa deusa deu origem do culto a Proserpina na Roma imperial e à progressiva importância da santidade bonária de Santa Maria na fase final do paleocristianismo.
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Fui para o Extremo Oriente. Um conceito budista talvez ajudasse a definir a ícone infantil: A Origem dos Quatro Sofrimentos. Na ontologia (**) do Budismo, “o que torna o nascimento, o envelhecimento, a doença e a morte um sofrimento é o apego ao externo” (Buda Shakyamuni, Índia, provavelmente século V A.C.). Essa hipótese, porém, vale somente se pensarmos o crescimento enquanto elo constitutivo da diminuição do sofrimento de nascer – que implica no subsequente envelhecimento.
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Passei ao teatro. Encontrei a infância enquanto tema central na obra de muitos dos grandes dramaturgos da História (que brevemente serão elencadas em artigo). Progressão e trama: Por seu caráter narrativo, qualquer arte performativa é um campo infinito em relação à infância. Mas o problema continuava: tudo ligado a maternidade, mesmo no século XX.
Talvez por ser o teatro uma arte mais antiga que…
O cinema!
Aqui, inverteu-se o sinal da dificuldade. Há, sim, definição de infância no cinema: ela é progressiva, gramatizada, mental como a fenomenologia de Heidegger. Será assunto do artigo acima prometido. Ainda: o tratamento da infância por parte da mídia e um elenco de títulos a serem abordados à luz dessa declaração do cineasta russo Andreij Tarkoviskij:
“Aprender a amar a solidão. Ficar mais
sozinho consigo mesmo. O problema com
os jovens é a preocupação com as turbulentas e
agressivas ações para não se sentirem sozinhos
e isso é uma coisa triste. O indivíduo deve
aprender a ser como uma criança, o que não
significa estar sozinho. Significa não se
aborrecer consigo mesmo. O que é um indício
muito perigoso, quase uma doença”
(*) O termo Dasein, “estar em”, pode ser traduzido como “existência”, se usado no sentido metafísico tradicional. A gênese do significado do termo especificamente heideggeriano está presente numa referência explícita ao termo “vida” em “notas sobre a psicologia das visões de mundo”, de Karl Jaspers. Para se ter uma medida da diferença implicada pela ideia: Se pensarmos o homem (à la Aristóteles) enquanto “animal racional” capaz de resolver problemas e agir de acordo com os seus desejos e crenças, a consequência lógica será um entendimento da mente descritivo de suas capacidades racionais e de escolha entre alternativas, manipulação de símbolos e adaptação a regras fixas. Exatamente o que um computador também é capaz de reproduzir e simular. Mas, se pensarmos o homem como uma existência, como Dasein, ou seja, se o pensarmos do ponto de vista ontológico como o fez Heidegger, a reflexão fica muito maior, complexa, irredutível a modelos formais , não importa o quão sofisticados e ideológicos sejam. (A reflexão foi inspirada por Carlos Valentini e Hubert Dreyfus (EUA, 1929)
(**) Estudo do ser enquanto tal em suas categorias básicas. É um dos ramos fundamentais da filosofia; considera-se Parmênides de Eléia (Παρμενίδη em grego, século V a.C.) o seu primeiro grande expoente. O termo deriva do grego ὄντος – Ontos – (genitivo singular do particípio presente do verbo ὤν εἶναι –einai – “ser”) e λόγος – logos – (“discurso”), e significa literalmente “discurso sobre o ser”.
Bibliografia
– H.L. Dreyfus, Wkat Computers Can’t Do: The Limits of Artificial Intelligence, Harper and Row, New York 1972.
– HEIDEGGER, HUSSERL E LA FILOSOFIA DELLA MENTE
Conversazione con Hubert L. Dreyfus – Carlos Valentini
(http://www.valentiniweb.com/piermo/documentazione/intelligenza.htm)
– BS Portal / Os quatro sofrimentos
http://www.bsportal.com.br/budismo/filosofia/sabedoria-budista-para-vencer-os-sofrimentos/
– Martin Heidegger, Ser e Tempo, tradução de Fausto Castilho / Editoras: Unicamp/Vozes