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Papo com Paroni | É possível morrer, mas não é possível encenar: O testamento de Pirandello

Publicado em: 24/11/2015 |

Mauricio Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro
 
 
Todos os dias me pergunto se vale a pena esforçar-se para evitar a mediocridade do mainstream numa sociedade que preza a escravidão da funcionalidade enquanto fim em si mesmo. Faço isso para continuar a ser um artista, para fortalecer a criatividade e aprimorar o artesanato.  Nessa reflexāo, sempre comparece a lembrança de um texto que encenei em três países diferentes.  Durante a versão que fiz para a Royal Scottish Academy of Music and Drama,  um tumor maligno quase me matou. Desde entāo, a morte e o sentido da vida na arte – ou da arte na vida – são, para mim, o questionamento essencial do sentido histórico do trabalho criativo. 
 
 
Qual o texto em que estava contido tal questionamento?
O do mundo contemporâneo sob o olhar de “Os gigantes da montanha”, o último texto teatral do dramaturgo italiano Luigi Pirandello. Começa pela sua estreia, já num espaço não convencional, a céu aberto. Foi  no Giardino di Boboli, o estupendamente imenso jardim privado dos Medicis, diante do Palazzo Pitti. Era 1937, em plena era fascista, poucos meses depois da morte do autor, em 10 de dezembro de 1936. Foi um sucesso enorme. Como ele o definiu, esse Mito em Arte é uma visão onírica  que mistura invenção e biografia, teatro ficcional e realidade teatral, crise e tomada de consciência. Incompleta, a obra literária (o filho, Stefano Pirandello, encenou o final sob indicação do pai, moribundo) é  a conclusão amarga de sua visão do mundo contemporâneo desagregado que já vicejava no século XX. O autor morreu com 69 anos, de pneumonia agravada por uma repentina gripe. Suas cinzas repousam num lugarejo chamado Caos, ao pé do célebre pinho solitário dos campos de sua Agrigento natal.
 
 
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Pirandello escreveu numa carta a Marta Abba, sua amante e primeira atriz de sua companhia: “Você vai ver o que é Gigantes da Montanha! Tem tudo, é a orgia da fantasia! Leveza de nuvens ao ladeada por profundos abismos: gargalhadas que explodem em lágrimas, como trovões na tempestade; tudo em suspensão, tudo aéreo e vibrante, tudo elétrico. Nada comparável com qualquer coisa que já tenha feito. Estou tocando o ápice, você vai ver! Mas é você que o toca, minha Marta! Você, com a tua alma, que exulta e inspira em mim aquele ar fabuloso que todas as personagens respiram,  aquelas palavras que brotam como flores, surpresas por terem nascido! Tem alguém aqui, minha Marta, que está vivendo a tua vida, e você não sabe, a tua verdadeira vida!”
 
 
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Na mansão dos “desgraçados” (poderia ser uma favela), onde vivem alguns seres livres (ou párias) da sociedade constituída, a primeira atriz Ilse chega com sua companhia. Quer levar a termo uma missão ao mesmo tempo artística e amorosa: por sua causa, um poeta suicidou-se; ela sente o dever de encenar uma sua peça, qual único modo de trazê-lo à vida, ainda que simbólico. Trata-se de uma obra complexa. O mago Cotrone, líder daqueles seres, tenta fazê-la desistir do intento e realizar a representação sem um público real, somente em sonhos – o que ele proporcionaria com facilidade.  Ao recusar tal imaterialidade, ela se vê na contingêcia de representar para o único público real disponível ali: uma platéia de ignorantes e violentos obreiros gigantes. Estes sequer compreendem o que é teatro; confundem os atores com brinquedos estragados e se divertem a trucidar a protagonista e parte do elenco.
 
 
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“Que nada reste de mim,
1. Deixe-se passar a minha morte em silêncio. Os inimigos rezem, os amigos sequer acenem sobre ela nos jornais. Nem anúncios, nem participações.
2. Morto, não me vistam. Envolvam-me num lençol, nu. E nada de flores sobre o leito, tampouco velas acesas.
3. Carro fúnebre de última classe, de pobre. Despojado. Que ninguém me acompanhe. Nem parentes,  nem amigos. O carro, o cavalo, o cocheiro e basta.
4. Cremem-me. Que o meu corpo seja disperso de modo a nada, sequer as cinzas, sobreviverem. Em caso de impossibilidade, que levem a minha urna cinerária até a Sicilia e murem-na sob qualquer pedra rústica nos campos de Girgenti, onde nasci.”
 
 
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Com a última obra e tal testamento, o ditador fascista Benito Mussolini e seus gerarcas se enfureceram e  se desapontaram. Queriam um herói de regime, um poeta da “Nova Itália”. Acusaram-no de ter “saído pela porta dos fundos”. Político e matafisico ao mesmo tempo, o fato é que completou a peça com o seu próprio antifuneral, o verdadeiro último ato de “I giganti della montagna“. O quarto ato faltante.
 
 
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Fez coro a André Breton e ao caminhão de mudanças que levou o seu caixão. Ou ao carro de téspis de Ilse e sua companhia na mansāo dos desgraçados. A contaminação de limites foi a suma lógica de Pirandello que congelou a representação da morte no palco e na vida, assim como o fizeram Kantor e outros raros gênios do teatro contemporâneo: Na impossibilidade da representação, não se encena o irrepresentável. Se contextualiza a multiplicidade de realidades não representáveis, os grandes fundamentos da trama possivel na contemporaneidade: o atrito casual entre as ruas, a platéia e o espaço de representação. 
 
 
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Jacob Guinsburg ressalta a formação de Pirandello, que estudou filosofia na Alemanha no início do século 20, em plena passagem de um pensamento que trabalhava com características fixas para outro sistema baseado na mobilidade. “[Os anos 20] criaram instrumentos para pôr no palco a noção do grotesco, categoria fundamental do teatro moderno, que surge da justaposição de dois elementos não orgânicos entre si, o trágico e o cômico”. 
 
 
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Pirandello contamina a linguagem de maneira raramente posta no teatro. Seus diálogos misturam falas corriqueiras às reflexões das personagens sobre o real, o belo e ao drama da inútil busca humana por permanência numa realidade transitória. Prenúncio emblemático da arte de fronteiras que tentamos desenvolver hoje. 
 
 
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Vivemos o preciso momento onde comparecem distintos projetos de História, entre laicismo e teocracia; o antagonismo entre eles começa a adquirir contornos mais nítidos na inversa proporção da definição das armas e lugares onde a briga irá se desenrolar. Promova-se, então, o exercício da interrogação sobre os limites entre ficção e realidade, entre a arte e a barbárie, comuns a quaisquer civilizaçōes. Essa é uma função que o teatro – só ele justifica a nossa existência artística – pode, ainda, desincumbir-se com baixo custo, sem guerras e demais esquizofrenias sociais.

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