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Papo com Paroni | Discurso sobre uma receita do bolo e alguns simulacros I

Publicado em: 24/02/2015 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Fui convidado pelo diretor dinamarquês Soren Hollerup a traduzir “Hedda Gabler”. Respondi com um desafio: fazer a dramaturgia da sua montagem. Gosto muito de traduzir, mas sou fundamentalmente um diretor. Não poder influenciar o trabalho não é meu estilo; prefiro acordar os limites dessa influência. Concordamos, pois: Numa inversão de papéis, escreverei o que teria feito com o texto como se fosse um diretor. Caberá ao diretor real colocar ou não em cena o material, do jeito que quiser, após as discussões sobre o texto e trabalho prático com os atores. Teoria onde se faz necessário teoria, pratica onde se faz necessário pratica. Serei, portanto, um honrado dramaturgista.

 

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Expus as estações principais do plano de trabalho:

– Verter a sua adaptação (*) sem trocar uma virgula do original ibseniano e ajudar nos cortes. Pode parecer literatura de palco, mas é justamente para não entregar tal fardo aos atores. Os bons atores brasileiros são manipulados pela direção a fingir e a ressaltar que estão no papel de “atores”, anacronisticamente entendidos como aqueles que sabem “falar bem” para uma plateia de beócios televisivos – do lado direito – ou de futuros revolucionários livres da alienação cultural elitista – do lado esquerdo. Jamais são vistos como quem significa com própria carga existencial uma plausível situação que pode acontecer entre seres humanos.

– Verificar os cortes feitos e, respeitando também até as vírgulas, gravá-los e colocá-los à escuta do público nos vários ambientes do edifício teatral, longe da plateia. Isso quer dizer que o texto de Ibsen continua ali. “Hedda Gabler” é um texto algo diferente da habitual fase realística de Ibsen onde o passado emerge para complicar o presente das personagens. Essa característica transformou o teatro e a dramaturgia ocidentais. Em “Hedda Gabler”, há quase e tão somente o que vemos em cena, além dos comentários aparentemente casuais sobre as relações entre as personagens. São importantíssimos, embora não interfiram nas transformações radicais do curso da trama – como seria um ponto-chave de Brecht, por exemplo.

– Consequentemente, haverá dois textos à disposição: um primeiro para espetáculo dentro da caixa preta do palco, de pouco mais de uma hora, denso, fidelíssimo ao original. Um segundo, de fragmentos nascidos dos cortes, como gossips com as vozes dos atores, gravações a serem ouvidas a esmo em outras partes do edifício teatral. A decisão caberá ao diretor. Isso é anticonvencional, ainda que filológico com o texto escrito por Ibsen.

 

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Batamos na tecla dolente. O que nos interessa desse trabalho é… seria isso narrativo ou performático? Os dois. Certamente haverá diferenças entre narrativo e performático, como não haverá alguém totalmente heterossexual. Jamais haverá diferenças perfeitamente mensuráveis entre o que chamo de estados de ser.  Não se trata de uma questão de forma, mas de procedimento.

Para não cair na teorização que não se faz útil na compreensão dessas diferenças, peço vênia para prosseguir com esse exemplo prático: o Ibsen pico formal do teatro burguês. Teatro Burguês não é teatro de burguês.

 

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Hans-Thies Lehmann (*) fez a sua análise crítica da dramaturgia do teatro burguês afrontando a rígida estruturação teatral norte-europeia enquanto bem público, estatizada, mas garantidora da dialética ideológica. Vice-versa, aqui o Estado é desorganizador, com o fim de garantir rigidez ideológica para os dois lados: o direito (televisivo e musical) e o esquerdo, o teatro da “contrapartida social’. Não importa se o nível cai tendo atores mal pagos e obrigados a fazerem três ou quatro trabalhos ao mesmo tempo para poderem (remediado, à esquerda; principesco, à direita) se manter. Maniqueísmo de cartilha de macumba, o resultado é o “estilo” – falas deco-descolettes para um público, que “não tem teatro”, que “quer dar risada”, que consome numa “agenda positiva”. Nada de qualidade, mas uma “contrapartida” estabelecida sob a égide de preconceitos de todos os gêneros.

 

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Mediante tal prática nefasta, um escritor com a acuidade de visão de Lehmann acaba por ser reduzido a método. Alimenta o lumpesinato cultural sedento de teoria facilitada para a redação de projetos rasos, quando não ilegíveis. Método soa bem nos trabalhos de faculdade e nas monografias universitárias. Se for científico, então, remete a Saint… Brecht! Como se pode sempre homologar tudo no atual clima de cinismo distópico, “Brecht” soa bem até para diretores de marketing das empresas beneficiadas pela renúncia fiscal.

 

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A Enciclopédia Italiana (Treccani) define método como “qualquer procedimento com o objetivo de se chegar a um conhecimento válido, dotado de sentido e, especialmente no caso da filosofia, verdadeiro. Com o nascimento da ciência moderna, surgem as reflexões de René Descartes (que fez da ‘questão do método’ o problema fundamental da filosofia), de Galileu (que deu forma ao método hipotético-experimental da ciência moderna) e de Isaac Newton (que o sistematizou). A discussão sobre o método científico foi renovada no início do século XX através da epistemologia.”

Em sentido mais amplo, Frédéric Kerlinger enumera diferenças para se chegar a uma verdade cientifica. (**)

– Determinação: saber que algo é verdade porque se baseia em nossa vida e se continua a dizer é verdadeira;

– Autoridade: uma coisa é verdade por estar estabelecida por uma autoridade reconhecida (Bíblias, profetas, cientistas, organizações);

– Apriorístico (intuição): algo é verdadeiro se estiver de acordo com a razão, que tem inclinação natural à verdade;

– Científico: saber que não é determinado por algum fator humano, mas por uma realidade externa, permanente e não influenciado por nossos pensamentos.

A questão do método em relação ao campo de investigação científica levou à distinção entre os métodos próprios das ciências naturais e os das ciências históricas e sociais.

 

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Mais: Lehmann também não pode ser visto como sistema. Segundo a Enciclopédia Italiana (Treccani), sistema, no seu sentido mais geral, é um conjunto de elementos ou subsistemas interligados entre si ou com o ambiente externo através de relações recíprocas, que se comporta como um todo de acordo com suas regras gerais”.

 

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Mesmo discordando de alguns autores que nutrem afinidade eletiva com essas assertivas, convenhamos: teatro não é uma ordenação de fenômenos externos à nossa realidade que, verificados, estabelecem um princípio. Justamente o contrário, e por isso se escolhe ir ao teatro. Nem é esta uma questão de emoção ou de adrenalina. Ciência e teatro são generosas nisso, mas são de natureza diametralmente opostas.

 

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Tampouco utilizo a palavra método enquanto manual didático. Isso ocorreu muito tempo por causa da ditadura e decorrente de pauperamento intelectual, técnico e pedagógico. Quando eu comecei, em meio à ditadura, a censura e perseguição a artistas e produtores, só havia dois “métodos” acessíveis: Stanislavski e Teatro do Oprimido. O primeiro, por três livros mal traduzidos. O segundo, por leitura – seu autor estava exilado em Paris. Com as universidades, melhorou um pouquinho, mas a estreiteza de visões continua generalizada entre a imensa maioria dos interessados no teatro. Grassam ainda expressões como “tipo Brecht”, “tipo Artaud”, “Tipo Stanislavski”.

 

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Essa linguagem viciada se estende a Lehmann. Não se o declara enquanto tal, mas a sua crítica é tratada como método por muitos leitores superficiais. Para descrédito dos apologistas do pós-dramático enquanto metodologia, ele está inserido num contexto rígido como o teatro alemão do século XX qual uma das vozes que contestaram aquela cena. Heiner Müller, pessoalmente e por mais de uma vez, manifestou-me a sua perplexidade quanto a muitos brasileiros acreditarem na arte a serviço de uma espécie de ideologia de partidão. É fácil perceber por estar sempre ligado a algumslogan: “objetivos e justificativas”, “movimento”, ”público-alvo”, “política cultural”, “mercado”, “estilo”, a algum… “método”. Sempre a uma argumentação rasa, depauperada, tecnicamente infundada, a-histórica.

 

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Para estar com os pés no chão, proponho uma analogia direta.

Se um espetáculo for um bolo, poderá ser de muitos tipos. Fiquemos nos de fubá (doce) e no de bacalhau (salgado). A receita é um procedimento cujas sequências em ato permitem a realização do bolo.

O bolo salgado poderá ser de batatas com espuma de bacalhau – chamemo-lo de “bolo performático com espuma de bacalhau”, inusual, surpreendente, bom ou ruim que seja. Emprego o procedimento (receita) performativo: máquinas moderníssimas para assar e transformar o bacalhau em sorvete e espuma, forno combinado para as batatas, formas elásticas. Um prato principal intrigante.

O bolo doce poderá ser de fubá com cobertura de chocolate. Chamemo-lo de “bolo convencional com cobertura de chocolate”, parcamente mineiro da Nêga Fulô, bom ou ruim que seja. Emprego o procedimento (receita) tradicional: bato as claras com açúcar branco, fubá mimoso, derreto o chocolate na panela de barro, uso forma de pirex redondo. Uma reconfortante sobremesa depois daquele bolo estranho.

Os dois precisam da cocção cujo método é ou forno à lenha ou eletrônico, mas não a receita (procedimento). O método é um aparato, um corpo técnico (tekné = trabalho), um conjunto orgânico com o qual – não o qual – o procedimento é posto em prática. Muito diferentes entre si, ambos são bolos (espetáculo). Por serem bolos, ambos têm um sabor (forma fruível pelo público) e ambos têm um contexto: prato principal (salgado) ou sobremesa (doce). Mesmo esse conceito pode ser invertido, mas será sempre em relação a um contexto preexistente: costumeiramente, o prato principal é salgado e a sobremesa é doce.

 

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O instrumento que eventualmente é a performatividade ou a leitura de mesa não pode ser chamado de método. Muito menos estilo, gênero, clichê ou forma.

A confusão se origina no que aludi ao início: o surgimento da figura do diretor junto com o realismo cênico, no aflorar da sociedade industrial do século XIX. A luz elétrica nas casas e nos teatros, a separação da luz da plateia e da ação no palco, a libertação da humanidade da prisão da noite, o realismo na dramaturgia e na literatura, a alfabetização do público, a possibilidade tridimensional do teatro enquanto mimese da realidade, o incremento da produção de bens materiais e culturais e a consequente circulação dos mesmos a níveis jamais vistos.

 

Tudo seria simples se esses fatos fossem para nós apenas referências históricas. Infortunadamente, viraram moda. Mais especificamente: simulacros.

(continua)

 

(*) http://www.treccani.it

 

(**) Fred N. Kerlinger, Howard B. Lee, Foundations of Behavioral Research, Harcourt College Publishers, cit. in Wikipedia.

(***) Hans-Thies Lehmann, Dramma didattico, teatro post-drammatico e questione della rappresentazione www.ojs.unito.it/index.php/COSMO/article/download/305/304

 

Pesquisa sobre os originais ibsenianos em Boksmal e Dinamarquês: Hedda Gabler norsk tekst

 http://ibsen.uio.no/VERK_HG.xhtml

http://ibsen.uio.no/DRTEKSTRED_HG.xhtml

http://www.ibsen.uio.no/DRVIT_HG|HGht.xhtml

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