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Papo com Paroni | Brilhantes e estilhaçados fantasmas

Publicado em: 30/10/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

A dramaturgia brasileira tem parca população de fantasmas clássicos, aqueles que agem como personagens vivas – com a única diferença que os demais sabem que estão mortas. Entre as muitas razões para isso, está o fato de ela ter se desenvolvido enquanto brasileira no século XIX, quando a credulidade da população que frequentava o teatro o diferenciava claramente do credo religioso. Seja o credo católico oficial, seja os perseguidos afro-brasileiro, e o kardecista.

 

Resultado do nosso lamentável descaso pela cultura tradicional e popular, não encontramos fantasmas “personificados” como em Shakespeare, em Ruzante, na Commedia Dell’Arte, no Noh, no Kabuki, no Bunraku, na Ópera ou nos bonecos de sombra chineses, no Balinês, no Kathakali, em qualquer um dos inexauríveis cantos narrativos polifônicos da África meridional, nos dibbuqs hebraicos, ou nas dramaturgias populares antigas, todos considerados herança cultural imaterial pela UNESCO.

 

Mesmo assim, encontramos um imenso panteão de fantasmas nas lendas, nos causos, em bares, esquinas, estádios e conversas, nas letras de música. Mas também, ao contrário dos saudáveis darks dos cemitérios, encontramos multidões de fantasmas em carne e osso com excessivo consumo de drogas, vagantes nas technos sombras ensurdecedoras, nos domingos de televisão e no big brother. O Brasil, que em muitos momentos da História foi porto seguro da evasão judaica das perseguições antissemitas, delas herdou o devaneio metafísico diante do insolúvel. Somos riquíssimos de fantasmas metafísicos, quais dibbuqs brasileiros e tropicais, mas chegaram pouco ao palco. A maior das exceções se deve a Ariano Suassuna (1927-2014), em sua simplicidade erudita e popular.

 

***

 

Na segunda parte do “Auto da Compadecida”, todas as personagens viram fantasmas. Em “A pedra e o reino”, as raízes luso-medievais de nossa sociedade afloram, como muito bem descrito por Carlos Lacerda: “Entremeado, todo o tempo, de símbolos e alusões, de recordações e fantasmas, poço inesgotável de estudos analíticos, livro de cabeceira para psicólogos e sociólogos, esse romance é uma explosão de maravilha. Não há que buscar nele o folclore, o regional, o ocasional, o circunstancial, e sim o universal, o permanente, como em Dom Quixote”. E, neste trecho de “Noturno”, a metafísica segue o fantasma: “Têm para mim Chamados de outro mundo / as Noites perigosas e queimadas, / quando a Lua aparece mais vermelha / São turvos sonhos, Mágoas proibidas, / são Ouropéis antigos e fantasmas / que, nesse Mundo vivo e mais ardente / consumam tudo o que desejo Aqui. / Será que mais Alguém vê e escuta?(…)”

 

***

 

Para quem trabalha com iluminação teatral: criar um signo para um fantasma – iluminar uma sombra – é luz feita sem eletricidade, mas com palavras, há milhares e milhares de anos. Um antiquíssimo verbo de origem indo-européia, bha – brilhar – mais phos – luz. A palavra grega phanein  brilhar, aparecer – conjugada, phaínein fazer aparecer – derivou em phantázein, em latim phantasma – mostrar. Palavra e sentido são ligados a phos – luz. Sua presença nos mostra o que há para ver; dia, “através” e phaínein, diáfanos, pode-se enxergar através dos fantasmas. 

 

Não só: fantasia designa algo que não é real, que só existe na imaginação, disfarce, aparência. Phainomai – ser mostrado, aparecer – derivou no latim phenomenon – tudo o que é percebido pelos sentidos. Espectro – aparição, imagem – deriva do latim spectrum, de specere – ver. O reino dessa luz é o seu oposto: a sombra, sulumbra, palavra latina oriunda da expressão sub illa umbra, literalmente sob aquela sombra. (*)

 

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Por se tratar de teatro, deveria ir obrigatoriamente ao misticismo urbano de Nelson Rodrigues, mas este merece mais que um artigo. Portanto, vamos em digressão para a poesia metafísica de Cecília Meireles (1901-1964), pelo nome de seu primeiro livro “Espectro”, e do último, “Salombra”. Trechos de sua poesia metafísica podem ajudar a criarmos um imaginário luminoso impossível em qualquer outra língua.

 

Ó luz da noite, descobrindo a cor submersa / pelos caminhos onde o espaço é humano e obscuro, / e a vida um sonho de futuros nascimentos.

[…]
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama, / a que não se recusa a esse final convite, / em máquinas de adeus, sem tentação de volta. // Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza: / Eu sou essa pessoa a quem o vento leva: / já de horizontes libertada, mas sozinha. // Se a Beleza sonhada é maior que a vivente, / dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho? / Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga. // Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas / vão as medidas que separam os abraços. / Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina: // “Agora és livre, se ainda recordas”

[…]

Há mil rostos na terra; e agora não consigo / recordar um sequer. Onde estás? Inventei-te? / Só vejo o que não vejo e que não / sei se existe.

[…]

Qualquer palavra que te diga é sem sentido. / Eu estou sonhando, eu nada escuto, eu nada alcanço. / Quem me vê não me vê, que estou fora do mundo.

[…]

Levantei os olhos pra ver quem / falara. Mas apenas ouvi as vozes / combaterem. E vi que era no Céu / e na Terra. E disseram-me: Solombra.

 

***

 

Sub illa umbra também quer dizer, em sentido lato, “sob a parte escura do céu”. Metaforicamente, pode indicar a região dos mortos.

 

Na atual mistura de sociedade pós-industrial de crendices medievais, do babado forte, somos todos sombras. Não nos é possível conversar; somente avistar, à meia-luz, a fragmentação das imagens e das palavras. Na falta daquele catalizador que era a conversação, as lendas urbanas prosperam. Felizmente, o brasileiro, graças ao seu misticismo metafísico, dificilmente se desespera diante desse quadro. Mas também é vitimado por devastadores coquetéis fundamentalistas políticos e religiosos, de telenovelas, de fantasias empregatícias. De emissoras de televisão sediadas em templos salomônicos.

 

***

 

A lenda urbana da menina da casa de brinquedos é emblemática. A alma penada de uma menina precisa do materialismo mal disfarçado do Natal para aplacar a sua não existência. A festa do velho São Nicolau (o weberiano protestante Santa Claus) provê da esmola espiritual católica ao prestígio da recompensa material àquela criança. Um simulacro decadentíssimo da oferta divina, se o leitor tiver a paciência e a ironia de assistir até o fim do desenlace deste tremendo vídeo, verá como um mau artista pode piorar a vida do mundo. Se sobreviver, desça a esta Giselle do Programa do Ratinho: é difícil ir mais adiante. Para não ceder ao nihilistmo lumpen-vilamadalenoso: este mau gosto pode nos demonstrar que vale a pena se esforçar para fazer mais pela cultura brasileira. Fazer simplesmente, neste caso, ajuda muito mais que especular sobre a estética.

 

(*) A pesquisa etimológica utilizou dados de www.origemdapalavra.com.br

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