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Papo com Paroni | Aura e Brincadeira: Convenção ou Convicção?

Publicado em: 31/03/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Ao sentar-me para traçar um paralelo entre a convencionalidade e tradição nos palcos em dialética com a vanguarda e a anticonvencionalidade, gostaria de contribuir para o abatimento dos preconceitos, que tanto prejudicam a realização de qualquer projeto artístico diante da multiplicidade de caminhos que o teatro feito hoje proporciona.

 

Quando escrevia sobre preconceito contra a forma, fui interrompido pela fumaça de um falso incêndio na sala. Já havia ocorrido por três vezes: num treinamento, pela invasão da chuva e a fumaça da máquina cênica vinda de um andar abaixo do meu. Abandonei a biblioteca às pressas, por uma situação falsa. Retomei o artigo, refletindo sobre a convicção que origina o preconceito: o engano de fato. Diferente do engano produzido pela arte, intencional, no qual a forma pede o jogo da credibilidade por parte de seu fruidor, percebo a centralidade que uma situação convencional no teatro pode condicionar a percepção (e consequente ação) na vida real. Estende-se à vida social e política.

 

O teatro pode penar cada vez mais para transformar o mundo, mas sempre testemunha uma convicção, consciente ou inconsciente. O que pode gerar situações transformadoras da realidade em que opera. Muitas vezes uma estética convencional pode ser mais transformadora que uma estética de vanguarda. Nem sempre o inverso é verdadeiro – para desespero dos simplórios do palco e das políticas culturais não pluralistas.

 

***

 

Lembro-me quando fui dirigido por Heiner Müller em 1988. O espetáculo era uma sua reescritura de Shakespeare e outros textos. Chamava-se “Shakespeare Cocktail” e era a sua primeira direção. A sala de ensaios fervia. Dele se esperava abstração teórica e politização, de acordo com o que logo percebemos serem clichês e preconceitos ideológicos a nós propinados por grandes “entendidos” de Müller. A mim coube um papel de algoz do autor teatral. Fui orientado por Heiner a ser um brasileiro fanático por futebol, que imitava locutores esportivos para confundir e assassinar nada menos que Shakespeare. Pediu-me o máximo da simplicidade, numa situação realisticamente impossível (momento acessível no Youtube, aos 6:30 min deste vídeo, todo ele interessante).

 

Colegas e um crítico que estavam presentes teceram muitas elucubrações estéticas; válidas, até. Mas Heiner foi taxativo:

 

– Mauricio, faça um bom personagem convencional. Você deve ser um alegre torcedor, assassino de um velho chato para você. Nada mais que isso.

 

– Um assassino da cultura, de Shakespeare, certo, Heiner?

 

– Esqueça Shakespeare. Deixe isso por minha conta, que sou autor; a cultura, por conta daquele crítico ali que esta tossindo sem parar no nosso ensaio; bastará que o público te veja como um assassino fanático por futebol. Arrisque a simplicidade, divirta-se. Beba seu whisky tranquilamente em cena. Aliás, passa cá a garrafa.

 

Bebeu com gosto.

 

Entendeu? Assim. Com gosto.

 

***

 

O texto que eu dizia era de um poeta simpatizante do nazismo, Gottfried Benn (1886-1956): um breve poema chamado “Certas noites da vida”. Nele, um mordomo lamentava a fumaça a invadir a sala de estar, pois a lareira queimava lenha úmida. Lamentava a falta de um patrão injusto, pois o seu velho amo tossia, à morte, pelo excesso de fumaça. Lamentava que a fumaça não o permitisse ser um carrasco de lâmina precisa, pois nem tinha do que se lamentar. A aura artística daquela poesia estava exaurida pela má fama de Benn, o autor originário. O drammaturg Heiner mostrava Shakespeare como o velho decrépito da lareira: o autor decadente por excelência, desesperado como o seu carrasco.

 

Era um retrato absolutamente fiel do final dos anos 1980. O retrato de hoje também. Ele havia assumido o Berliner Ensemble. Havia se transformado num encenador, pela primeira vez. Brincava conosco e com aquilo. Adorava beber comigo sempre que vinha à cena dar indicações. Heiner era transformador. O texto havia virado de uma ode pro-nazista a um manifesto niilista pela transformação do mundo. No dia da estreia, aquele alegre prussiano revolucionário deu-me de presente um poema curtíssimo escrito em sua caixa de charutos.

 

Sem esperança – Sem desespero/ Para Shakespeare e mordomo/ Maurizio e Luca / Heiner Müller 16/6/1988

 

O poema pode ser visto nesta foto. Eu estou aqui a escrever este artigo. Luca, o ator de Shakespeare, doutorou-se pela Universidade de Bologna e hoje é morador de rua mendicante em Roma.

 

 

Nem se sonhava o emprego da palavra pós-dramático entre nós. Havia estudado tudo o que pude sobre Müller, Berliner Ensemble, Weigel, Gestus, etc. Mas nada poderia ter sido mais próximo a Brecht. E nada mais longe daqueles seminários críticos e universitários que o atormentavam, que ele detestava, e que sabia sabotar com suas brincadeiras como ninguém. Porque a sua convicção vinha de sua biografia. Mas isso virá num outro artigo.

 

***

 

Segue um brevíssimo glossário sobre as palavras chave dos parágrafos anteriores:

 

Convenção. Do latim conventio, do verbo convenire, designando a ação pela qual muitos, de pontos diferentes, convergem para o mesmo ponto, num acordo explícito ou tácito para assumir, usar ou fazer algo.

 

Isso implica em diferentes associações. Por exemplo:

 

Espaço convencional. Diferente do de rua, que entra na vida o espectador de maneira preferencialmente incidental. Teatro deriva do grego theaomai (θεάομαι): olhar com atenção, perceber, contemplar (Enciclopédia Britannica 1990, vol. 28:515). Theaomai não significa ver no sentido comum, mas sim ter uma experiência intensa, envolvente, meditativa, inquiridora, a fim de descobrir o significado mais profundo; uma cuidadosa e deliberada visão que interpreta seu objeto. Jaco Guinsburg por sua vez, descreve a expressão cênica como formada por uma “tríade básica – atuante, texto e público”, sem a qual o teatro não teria existência. Atuantes não são apenas os atores, podendo ser objetos (como no teatro de bonecos) ou outras formas ou funções atuantes (animais ou coisas); o texto, por outro lado, não é apenas o texto escrito ou o falado no palco, pois o teatro não é uma arte literária. O teatro, mais do que ser um local público onde se vê, seria um lugar condensador da vivência das ambiguidades e paradoxos, onde as coisas são tomadas em mais de uma forma ou sentido.

Pós-dramático. Termo criado pelo alemão Hans-Thies Lehmann para a evolução das formas cênicas e textuais do teatro após as vanguardas do século XX. Ao rejeitar o que ele chama de teatro clássico burguês, o pós-dramático seria uma extensão da estética pós-moderna.

 

Vanguarda (do francês avant-garde).  Literalmente, guarda avançada (de um exército). Seu uso é metafórico quanto aos movimentos artísticos que produzem ruptura de modelos pré-estabelecidos, formas antitradicionais de arte ou experimentalismo.

 

 

(*) Poeta, ensaísta e prosador alemão do Expressionismo, o mais destacado da primeira metade do século XX e o renovador da poesia lírica em seu país no período após a II Guerra Mundial. Médico, em 1933 publicou “O novo Estado e os intelectuais”, ao aderir à ideologia nazista. Parou de escrever de 1936 até 1948. Esquecida, sua obra seria revalorizada: poesia hermética niilista, defendia um sistema fechado, no qual o leitor não participa na construção do poema.

 

Bibliografia

 

LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo. Cosac e Nayfy, 2007. Tradução de Pedro Süssekind.

GUINSBURG, J. O Teatro no Gesto in Polímica. SP: 1980.

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