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Papo com Paroni | Alguma arte em definição da Infância (Sem o Cinema) – I

Publicado em: 17/02/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

O primeiro livro importante a desembarcar no Brasil foi o “Index librorum prohibitorum” (“Índice dos livros proibidos”), pela Contrarreforma católica. Estava na bagagem dos sacerdotes da contrarreforma, os Jesuítas, primeiros responsáveis pela educação da Colônia. Além das proibições, normatizava a censura para a publicação de qualquer atividade cultural futura.  Resultado do Concilio de Trento (1564), o absurdo só foi abolido pelo Papa Paulo VI em 1966. A própria Bíblia estava proibida em suas primeiras edições do infame tratado. A bagagem chegou meio escondida e sem pompas, para orientar os trabalhos coloniais da Inquisição: as publicações elencadas no Index Livrorum são o que há de mais eficaz para uma formação intelectual libertária. É irônica a inversão de sinal do acontecimento inaugural de uma mentalidade cultural que nos faz sofrer até hoje (*).

 

Tenho problemas com listas de obras: a luz das evidências que delas emana deita sombra a outras evidências, num círculo vicioso de ilusões, além do inevitável esquecimento e ignorância dos elementos não contemplados. Uma lista é tolerável somente se servir como um estímulo para uma cartografia pessoal sobre o assunto enfocado. Assumo, portanto, o risco jesuítico da lista que segue, motivada pela necessidade de estimular a compreensão do preconceito do criancismo de forma o menos dogmática possível.

 

Deixo o cinema de fora, por ter elaborado uma outra lista ad hoc a ser publicada em breve; considero-o a arte mais contemporânea, abrangente e definidora da infância. Note-se: os autores abaixo listados viveram, em esmagadora maioria, no século XIX.

 

Vamos a ela, enfim:

 

– Todas as representações de maternidades da pintura. Entre as centenas, senão milhares de outras obras, é injusto ressaltar uma; mas arquemos, como já dito, com o ônus das listas: Cito a Virgem de Lucca de Jan Van Eyck (cerca de 1390-1441).

 

A relação com a Criança é sutilmente explorada pelo pintor na direção do mais declarado humanismo. O gesto de entregar-lhe o peito ao mesmo tempo em que o apoia suavemente sob o olhar transmite um clima intenso de interesse e intimidade afetiva, apesar da riqueza do cenário, das roupas e joias do modelo. O pintor deu-lhe a aparência de sua esposa Margaretha (talvez dentro de sua própria casa), que conhecemos em um retrato no acervo do Museu de Bruges.

 

– Crianças de Caravaggio (1571-1610) e Goya (1746-1828). As representação de Cupido, na obsessão do pintor em retratar “somente o real” cria um clima de interesse afetivo análogo ao de Van Eyck, com adição da sua barroca dramaticidade, levada ao ápice por Francisco Goya em sua denuncia social dos paradoxos políticos de seu século.

 

– Representações dramáticas e poéticas de Portinari (1903-1962). Além da arrebatadora imagem da infância violentada presente em Os Retirantes, o pintor de Brodowsqui retratou a felicidade da infância como crucial na vida e na sociedade humana.

 

– Músicas e cirandas populares brasileiras – Colocada na obra musical e educacional de Villa-Lobos (1887-1959), é um dos maiores momentos da arte do século XX. Sem o programa maciçamente educativo e escolar do canto orfeônico, a musica brasileira, popular ou clássica, seria muito menos rica.  Villa-Lobos valorizou a poderosa melodia da música brasileira num período histórico mundial em que somente se nos respeitava pelo ritmo. Cito ainda a excelência educacional, poética e técnica do trabalho pluridecenal de Luis Tatit (1951) na mesma direção.

 

– Cosme, Damião e Doum. Sugiro conhecê-los num bom terreiro.

 

– Saci Pererê: a simbiose do índio com o negro e o branco para proteger as matas. Quando surgiu, o Saci tinha uma perna só, além de um rabo. Suas traquinagens atrapalhavam a entrada dos intrusos na mata, o território indígena. Era uma forma de resguardá-lo da invasão dos indesejados homens brancos. A figura original do Saci – curumim (1) – sofreu alterações por ocasião da inserção, na cultura brasileira, da cultura de negros escravos e colonizadores europeus. O Saci se transformou em um garoto negro de características físicas africanas. Diz-se que a ausência da perna se deve a uma perda sofrida em uma disputa de capoeira. Também ganhou um cachimbo, típico dos costumes africanos. Da cultura europeia, ganhou um barrete vermelho que, reza a lenda, é a fonte de seus poderes mágicos.

 

(1) Curumim é uma palavra de origem tupi que designa, de modo geral, as crianças indígenas. Há variantes: colomim, culumim, colomi, curumi e culumi. Para o tupinólogo Eduardo de Almeida Navarro, o termo original era kunumim, que teria evoluído, na língua geral paulista e no nheengatu, para kurumim e coromim.

 

– Caim e Abel. O início da primeira civilização ocidental, segundo o criacionismo cristão, criancista, traz a ligação da prole com o pecado a partir da exploração da mesma pelos pais e por deus.

 

Nascimento de Caim e Abel:

(Gênesis 4.1-2) “Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a Caim; então, disse: Adquiri um varão com o auxílio do Senhor. Depois, deu à luz a Abel, seu irmão. Abel foi pastor de ovelhas, e Caim, lavrador”.

 

Caim mata Abel:

(Gênesis 4.3-7) “Aconteceu que, ao fim de uns tempos, trouxe Caim do fruto da terra uma oferta ao SENHOR. Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura deste. Agradou-se o SENHOR de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou. Irou-se, pois, sobremaneira, Caim, e descaiu-lhe o semblante. Então, lhe disse o Senhor: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo”.

 

(Gênesis 4.8-15) “Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou. Disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei; acaso, sou eu tutor de meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim. És agora, pois, maldito por sobre a terra, cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo, não te dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra. Então, disse Caim ao Senhor: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará. O Senhor, porém, lhe disse: Assim, qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes. E pôs o Senhor um sinal em Caim para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse”.

 

– No mesmo tema de criacionismo, cito a confiança cega de Abrahão em deus, em detrimento do filho; por oposição, a sabedoria de Salomão em recompensar a mãe superadora de seu interesse e punir o egoísmo da opositora.

 

– Tenho conhecimento limitadíssimo da cultura do Oriente. Mas posso lembrar algo sobre o Japão: as lendas de Urashima Taro ( 太郎) e Momotaro ( 太郎).

 

Urashima Taro conta que um pescador salva uma tartaruga e é recompensado por isso com uma visita ao Ryugu -jo, o palácio do Deus Dragão, sob o mar. Ao seu regresso à sua aldeia, encontra-se 300 anos no futuro. O nome de Urashima Taro aparece pela primeira vez no século 15 (o período Muromachi), mas a lenda é muito mais antiga, que remonta ao século 8 (o Período Nara).

 

Isso é particularmente interessante para nós: A mudança de Urashimako de Urashima Taro reflete uma mudança nos costumes de nomes japoneses: o sufixo -ko (“criança“) foi originalmente usado em ambos os nomes masculinos e femininos, depois restrito a nomes femininos, e substituído por – Tarō (“grande juventude”) em nomes masculinos. A trama tem impressionante semelhança com contos populares de outras culturas, incluindo a lenda irlandesa de Oisín.

 

A segunda lenda, do período Edo (o shogunato do século. Xii ao xviii, um tipo de feudalismo parecido com o ocidental), traz o protagonista Momotaro ao mundo dentro de um pêssego gigante, pescado num rio por uma lavadeira idosa sem prole. A mulher e seu marido abrem o pêssego para comê-lo, descobrem dentro uma criança que lhes diz ter sido enviada do céu para ser seu filho. De acordo com a versão mais antiga, a mulher mordeu o pêssego e ficou jovem e bonita, ofereceu-o ao marido e naquela noite conceberam um filho, que recebeu o nome de Taro (“grande filho”).

 

Isso, no Oriente.

 

– Vejamos a lenda sobre a fundação cultural do berço da latinidade. Antes mesmo do Cristianismo, pode-se avaliar a presença de várias tradições culturais que alimentam algumas fantasias criancistas. Segundo a lenda, Rômulo e Remo eram dois irmãos gêmeos. Foram filhos de Rhea Silvia, descendentes de Enéias e Marte. Rômulo foi o fundador lendário da cidade de Roma e seu primeiro rei. A data de fundação seria 21 de abril de 753 a.C.  A lenda da fundação de Roma é relatado pelo historiador romano Tito Lívio no Livro I de sua História de Roma. Mas isso é considerado como fábula. Para muitos críticos, a cidade de Roma não foi sequer formada no tempo do rei Tarquínio, ao final do século VII a.C.

 

Esta é a estória sugerida na Eneida, do poeta Virgilio: Vencida a Guerra de Troia, Enéias pousa no Lácio. Em seguida, decidiu fundar uma nova cidade, dando-lhe o nome de Lavinium, em homenagem a sua esposa Lavínia. Mais tarde, o filho de Eneias, Ascânio, fundou a cidade de Alba. Seus descendentes governaram por muitas gerações (a partir do décimo segundo ao século VIII a.C.), até quando foi ao reino de Amúlio, em que havia usurpado o trono a seu irmão Numitor. Numitor, que era o mais velho, herda o reino da dinastia Silvia. Força Rhea Silvia a tornar-se uma virgem vestal tirando-lhe a esperança de se tornar mãe. No entanto, o deus Marte, apaixonado, força-lhe a posse em um bosque sagrado. Faz dela a mãe dos gêmeos Rômulo e Remo. Rhea Silvia foi posta à morte, como previsto na lei para as virgens vestais que não respeitam o voto de castidade. Aniene, o afluente do Tibre onde o corpo foi jogado, teve compaixão e a ressuscitou. Os gêmeos foram abandonados numa cesta no Capitólio. Uma loba os amamenta. (Uma incipiência de verdade histórica na lenda sugere que tenha sido uma prostituta de passagem a fazê-lo). As crianças cresceram na cabana no topo da Colina do Palatin, de Faustulo e Laurentcia. “Fortalecidas no corpo e no espírito, não só enfrentam as feras, mas emboscam bandidos com seus saques.” (Tito Lívio, Ab Urbe Condita, I, 4.)

 

– As lendas transcritas por Esopo (620-554 a. C.), Jean de La Fontaine (1621-1695), Jacob e Willhelm Grimm (1785/86 – 1763/59), Hans C.Andersen (1805-1875).

 

 A representação de Cupido, de Caravaggio

 

– As Aventuras de Pinóquio – a estória de um fantoche, de Carlo Collodi, pseudônimo de Carlo Lorenzini (1826-1890), de 1881, é um clássico da literatura para crianças. Pinóquio, chamado pelo autor impropriamente fantoche, embora morfologicamente semelhante (corpo de madeira, a presença de articulações), está no centro de aventuras mundialmente famosas.

 

Sua tendência humanizada de mentir, denunciada quando o nariz cresce a cada mentira que diz, invadiu o mundo do cinema e dos quadrinhos. Em sua figura também foram feitos álbuns de música e produções teatrais, em forma de musical. Isso porque trata-se de um corolário moral que muitas vezes se confunde com a educação formal.

 

– Assim também aconteceu com Peter Pan, cuja tendência a não crescer é uma projeção de adultos sobre as crianças. Disso se valeram quase todas as criações e recriações de Walt Disney – praticamente mundializaram o american way of life através da formação das crianças com filmes e, principalmente, desenhos animados. O arco de criações nesse universo foi disputadíssimo, indo do macarthismo e o império do entretenimento à critica ao capitalismo de Carl Barks (o verdadeiro criador de Donald e Tio Patinhas, que trouxe a oposição entre o capitalista ambicioso e o sobrinho pobretão, mas humanamente feliz). Barks foi perseguido pelo macarthismo dos anos 50.

 

– Charles Dickens (1812-1870). Seu romance autobiográfico, David Copperfield, é leitura imprescindível a quem quiser realizar qualquer obra sobre o criancismo, pelo seu contexto e excelência literárias.

 

– “Alice no país das maravilhas”, de Lewis Caroll (1832-1898), traz uma importante metáfora do universo infantil, ao subverter as regras da lógica, linguística, física e da matemática.

 

– “O pequeno Eyolf”, de Ibsen (1828-1906), exemplo clássico das consequências do abuso e negligência infantil (CAN – child abuse and neglect) nas relações familiares. A primeira apresentação, realizada no Deutsches Theater, Berlim, em 1895, dirigida por Otto Brahm, que tinha sido recentemente nomeado diretor do teatro, foi uma das grandes afirmações do diretor como coautor de um espetáculo.

 

– “O pássaro azul”, uma epopeia teatral da inteligência infantil, e “O massacre dos inocentes”, conto sobre os horrores de massacres infantis de natureza política. Ambos de Maurice Maeterlinck (1862-1949).

 

– Museus de arte infantil pelo mundo, em especial os de Oslo, de Madri, e da Universidade Federal de Santa Catarina.

 

(*) Alguns dos livros proibidos no Index:

 

A Bíblia

O próprio Index Librorum Prohibitorum

Copérnico

Johannes Kepler, De revolutionibus orbis Coelestium

Rabelais

La Fontaine

Descartes

Michel de Montaigne (Ensaios)

Erasmo de Rotterdam

Conrad Gessner  

Pascal

Montesquieu

Spinoza

David Hume

Kant (Crítica da Razão Pura)

Beccaria (Dos Delitos e das Penas)

Zola

Balzac

Victor Hugo até 1959.

Berkeley

Condorcet

Bentham.

Maurice Maeterlinck

Anatole France (incluído em 1922)

André Gide (1952)

Jean Paul Sartre (1959)

O sexólogo holandês Theodoor Hendrik van de Velde

Marx

Nietzsche

Henri Bergson (1933)

 

Somente em 1948, foram cerca de 4.000 títulos censurados por “heresia”, “deficiência moral”, “sexo explícito”, “incertezas políticas”, entre outras justificativas.

 

 

Bibliografia:

Monteiro Lobato, O Saci, São Paulo: Editora Brasiliense S.A.

Nilza Megale, Folclore Brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes.

wiki/Saci/curumim

Folclore Brasileiro Ilustrado: Lenda do Saci Pererê

E. A. Navarro, Método moderno de tupi antigo. Terceira edição. São Paulo: Global.

Donna Rosenberg, Folklore, myths, and legends: a world perspective.

Biblia, Genesis

Tito Lívio , Ab Urbe Condita , I, 4 .

Virgílio, Eneida, VI, 767 e s cantos seguintes

Henry Kamen, A Inquisição espanhola. Uma revisão histórica. Barcelona: Crítica.

Decreto da Sagrada Congregação do Índice de purga ou proibição

Modern History Sourcebook: Index Librorum Prohibitorum, 1557-1966. Fordham University – Universidade Jesuíta de Nova York

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