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Palavra é lugar!

Publicado em: 06/04/2015 |

I- Em 26/03/15, estreou numa única sala de cinema da cidade de São Paulo o documentário “Eduardo Coutinho, 7 de outubro”. Com direção de Carlos Nader, o filme inverte papéis: põe o mestre dos documentários na cadeira de entrevistado. Examinando a zona de fronteira entre documento e ficção, Eduardo Coutinho discorre ali sobre sua arte e seu método. A semelhança com os achados freudianos é patente. Diz Coutinho (provavelmente não com estas palavras): 1- Tem de haver uma justa distância para que a entrevista se dê. 2- Tenho que estar vazio para fazer alguém falar. 3- Não entrevisto quem eu conheço. 4- Cria-se um campo erotizado entre entrevistador e entrevistado. 5- Os corpos também falam a sua linguagem e temos de saber lê-la. 6- Há ficção bastante no documento… E por aí vai!

Coutinho foi quem deu novo lugar ao documentário, ao inverter o acento das frases, ao provocar propositadamente um choque de nossas ilusões mais caras. Em sua obra, numa síntese, discute-se esta oposição: filmagem da verdade versus verdade da filmagem! No processo de flagrar o acontecimento, o documentário cria alguma outra coisa: a realidade da sua confecção. Verdade e mentira, nos trabalhos de Coutinho, fazem uma dança peculiar.

Ao recolher depoimentos humanos, no frescor do primeiro jato, algo se realiza e, em seguida, imediatamente, se dissolve. Irrecuperáveis, os fatos se perdem no momento mesmo do acontecimento (a frase é de Gore Vidal).

Por estarmos sempre tentando entrar num bonde andando, ao se lidar com a verdade, há uma impossibilidade: a depender do ângulo que é traçado, a depender de nossa inclinação a partir da qual nos lançamos, encontramos um paredão. Irredutível!

Nesse jogo perigoso, tão caro ao campo das artes e aos processos de criação (e à filosofia e à psicanálise…), Coutinho ocupa uma posição sagrada: a de sage femme. “Mulher sábia”, em tradução literal: assim é como na França se nomeia a profissão de parteira.

Pois Coutinho parece ter a função de fazer parir um discurso. Com o propósito de que a palavra se realize, ele inaugura uma tópica, um novo lugar, em consonância novamente com Freud de 1897. Naquele ano do século retrasado, o pai da psicanálise é assaltado pela mentira: suas pacientes mentem!

Tendo acreditado na verdade dos fatos relatados, a ciência da alma está ameaçada de colapso. Em três anos, Freud dá seu salto épico: em 1900, a “inevitável mentira” é incorporada na teoria e na clínica psicanalíticas, com a publicação de “Interpretação dos sonhos”. Ali ganha relevo a noção de fato psíquico: há acontecimentos que manterão este estatuto, mesmo que a sua verdade esteja apenas na fantasia do sujeito que os criou. Mesmo que eles não tenham ocorrido “de fato”! Este é o novo topos: palavra é (também) lugar! Esboçados pela língua, fantasia e desejo estão irreversivelmente legitimados.

II- Coutinho explora essa tópica até as últimas consequências. E nos confessa seu prazer de fazer parir um discurso, de ver um sujeito se desenhando num gesto, consentindo em ser personagem, jogado num mundo ameaçador, povoado por forças que o submetem e que o colocam às voltas e à mercê de destinos sobre os quais ele nada sabe. Desamparos…

Há uma enormidade escondida nesses encontros minúsculos, em que um paradoxo pode caber numa equação e alguma coisa dolorosamente humana é expressa. Depois disso, Coutinho volta à sua própria miséria, conforme ele nos diz (não com essas palavras, novamente).

O documentário de Nader está à altura do entrevistado – ali também reconhecemos o imprevisto passeando solto e criando pequenas surpresas e pequenos improvisos, construindo uma história paralela àquela outra, “oficial”. Em alguns momentos, assistimos ao próprio Coutinho/personagem se responder alguma coisa; perder-se, encontrar-se, gaguejar, tossir, entusiasmar-se, entediar-se…

E temos ali, principalmente, a chance de vê-lo explicando sua ciência: suas estratégias para fazer sair do discurso um gesto, seus mapas para ler a língua do corpo, suas táticas para retirar das palavras uma cena e, enfim, encontrar verdade nas linguagens poliglotas e híbridas que seus entrevistados falam.

Nesse sentido, o filme é, involuntariamente – o que é melhor! –, uma aula de psicanálise e, mais que isso, uma aula de teatro. Nesse caso, Coutinho ocupa o lugar de diretor de atores, do tipo que sabe dar voz a uma personagem, do tipo que sabe identificar quando algo se realizou, e então dá por encerrada a conversa, à moda de Lacan!… Cinema, teatro e psicanálise se encontram aqui.

Mais ainda: há amor genuíno e silencioso de Coutinho por seus personagens. Ele torce, discretamente, para que, via discurso, a pessoa entrevistada tenha o triunfo de fazer caber naquela fração de tempo (diante de uma vida inteira) algo que tenha importância, algo que traduza alguma dor. Algo que se converta em frase. Uma simples oração. E, nesse processo, quando o encontro é bem sucedido e acontece, há uma dimensão estética que se infiltra na cena e na obra.

A esse respeito devemos lembrar que, para nós, humanos, encenar um conflito é a solução possível – que não resolve, não soluciona, não cura, não conserta coisa nenhuma! Não opera nada que não apenas a arte de apresentar a nossa pequena tragédia. Fragilidades! Note-se aqui o verbo “apresentar”. Não se trata de “representar” um drama, mas (ao contrário) deixá-lo mostrar-se uma vez em sua irrepetível singularidade. Nessa apresentação, mesmo a da nossa própria história, já há suficientes cargas de inédito. E, entretanto, essa cena se desintegra em seguida. Puf! Tal qual no teatro, tal qual nos consultórios onde se pratica a “cura pela palavra”. Efemeridades…

Na construção e no atravessamento dessas vinhetas trágicas construídas no cinema de Coutinho, minúsculas e enormes ao mesmo tempo, o lugar do cineasta parece ser o de testemunha.

Mas ele sabe de sua “culpa”, por assim dizer, e se responsabiliza e encampa sua parcela e sua presença na cena: observar fenômenos não é nunca uma atividade neutra. O observador, mesmo que reservado e silencioso, interfere e modifica o fenômeno observado. A cena é, assim, uma coprodução! Um filho de dois. Essas “narrativas performáticas” cooptam aquele que observa e o obrigam a participar. Essa consciência de Coutinho faz com que haja – além daquela dimensão estética – uma dimensão Ética (em maiúsculo) em curso na cena e na arte que ele inaugura.

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]

 

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