SP Escola de Teatro

Oficina Olhares: “É possível lavar-te a pele?” por Manfrin Manfrin

Por Manfrin Manfrin, participante da oficina Olhares, especial para SP Escola de Teatro

 

É possível lavar-te a pele?

Ao som da diva Nina Simone e uma sinfonia ainda tímida de grades e ferros, fui recebida assim de dentro da minha casa – sim, acompanhei essa obra de dentro do privilegiado e confortável espaço íntimo do meu quarto. E essa condição talvez tenha sido extremamente importante para que eu como uma corpa travestigenere branca ainda sim me sentisse mais protegida e feliz do que aquele corpo-artista ali na minha frente, mesmo que tela, ainda corpo. Confesso que do altar de minha branquitude, nos primeiros minutos pensei: esse corpo está usando Nina Simone e grades, mas nao é um artista negro? Como assim… Eu… no altar de minha branquitude me deixei ser levada pela petulância dos seres humanos. Era apenas um jogo de luz, que logo me revela o artista. SIM! Um homem negro, e agora me perguntei, oh grande crítica, o que você faz com isso? Uma pessoa só pode usar referências de artistas negros se for negra? Volto a tela. Volto: então me coloquei a ouvir, mais uma vez apenas tentar ouvir o que aquele corpo diz, que em uma coreografia com certa energia cotidiana montava seu próprio espaço íntimo. Que parecia mais uma jaula ou cárcere. Ele ali no seu íntimo, e eu aqui cada umi em sua bolha.

O que você faz com aquilo que te aprisiona? Esse corpo, como todos os corpos desviantes, vem e ressignifíca delicadamente aquilo que mais o aflige. O que poderiam ser grades de aprisionamento e punição, com a ação e interpretação do artista se torna parte de seu corpo, como um corpo ciborgue que carrega consigo suas questões – mas que sem dúvida não está sob o controle de ninguém. Se ele quiser, ele te mata com o mesmo objeto que te aprisiona.

Inicia-se uma sessão de lavação!

– Um adendo! Eu morei em Salvador/BA durante 3 anos e a lavação das escadarias da Igreja do Senhor do Bonfim foi uma das manifestações populares que tive a honra de assistir algumas vezes – e sempre me emociona muito, pois me sinto lavada junto com aquelas pedras. No entanto, aqui, essa lavação não era como as mãos das baianas do Bonfim, que apesar da força não tinham medo. Medo daquela sujeira. Não, as baianas estão ali sem luvas, acompanhadas de seus orixás, arruda, água e fé.  Em “Cemitério dos Vivos” NÃO! Quem limpa tem medo de quem leva o banho. Não é um banho de mãe. Não é um banho de baiana. É um banho higienista. Embranquecedor. Aí eu lembro do Brasil, da história do Brasil. O processo de branqueamento que nosso governo empreendeu no decorrer dos últimos séculos, o próprio processo de escravização dos corpos africanos sequestrados para essa terra – que a tomara para si e hoje de fato a merece e aqui pertencem. De novo lembro do Senhor do Bonfim. Então percebo que o cemitério dos vivos é o Brasil! E que quem nos limpa, nos branqueia e nos higieniza também tem medo da gente. Então: ATENÇÃO!

Sobre a cena, era muito delicado, mas muito violento como quem jogava a água fazia questão de jogar nos pés quando percebia que o ator escorregava. Isso é muito potente! Durante isso só um canto me ecoa, um canto de liberdade das barras de Juçara Marçal. “Quero morrer num dia breve. Quero morrer num dia Azul. Quero morrer na América do Sul” Nisso o ator confessa que quer ter outra vida. Quer? Quer mesmo? Eu não acreditei nisso, mas foi bom não acreditar.

Ele desiste. Ele depõe. Ele está em foco. Ele. Ele nos conta que não vemos o que os olhos dele vêem. E que ninguém nunca verá como vemos. Ou algo parecido com isso. Mas essa obviedade me assusta. É preciso rir para não chorar. É preciso, e ele destrói as jaulas. Mas eu novamente impetuosa pergunto a ele. “- E agora camarada? Destruiu a jaula, mas não destruiu o racismo? Como faz?”. Imediatamente eu desabo e lembro do que ele acabou de dizer: eu só vejo o que eu vejo. E, sem dúvidas, como vou destruir de fato a jaula do racismo para mim, eu mesma preciso me responder.

 

 

*Manfrin Manfrin é mestra em Artes Cênicas pela USP na área de Teoria e Prática do Teatro. É dramaturga, performer, atriz, diretora, arteducadora e pedagoga de gênero. É formada em Artes Cênicas e Interpretação Teatral pela UnB e Direção Teatral pela UFBA. Defendeu este ano sua pesquisa de mestrado intitulada “Práxis Queer da cena: Percurso de corpos travestigêneres e trans não Binários nas artes cênicas contemporâneas brasileiras” sob orientação do estudioso de Teatro e Gênero Prof. Dr. Ferdinando Martins, professor da USP. É auto das obras autobiográfica “fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO. Histórias para Tangerinas e Cavalas-Marinhos.”(2018); “COCO!” (2019); “FURA! ou um objeto de penetração!” (2020) e “Cartas Para(Ti)” (2021).

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