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O teatro é uma lição

Publicado em: 08/09/2014 |

* por João Branco, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

O mês de agosto terminou para mim da melhor forma possível: com a estreia mundial de um espetáculo na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, enquadrado num festival que é já uma referência para todos nós. Falo, como é óbvio, do Festlip – Festival de Teatro em Língua Portuguesa, cuja sexta edição decorreu entre 27 de agosto e 5 de setembro. É preciso, pois, tirar o chapéu à sua diretora artística, a atriz e produtora Tânia Pires, pela persistência, audácia e qualidade do seu trabalho.

 

A peça que fomos apresentar nesse evento foi “A lição”, o clássico de Ionesco, dramaturgo romeno considerado, juntamente com o irlandês Samuel Beckett, um dos “pais do teatro do absurdo”. Escrita em 1951, retrata uma “aula” que acaba num violento assassinato. Vem-se a saber no final que o professor já havia matado 40 alunas só naquele dia, o que era considerado pela sua fiel criada inaceitável, já que “continuando assim, ainda vai ficar sem alunas e, o que é pior, ainda lhe dá uma coisa no coração”. O professor, no início um simpático velhinho, se transforma ao longa da aula num homem forte, temível e letal, muito por causa da incapacidade da aluna em entender matérias tão simples quanto a aritmética ou a filologia comparada. 

 

Um personagem fascinante que tem paralelo com a conhecida história do DrJekyllandMrHyde (“O médico e o monstro”) ou o próprio Hulk, o monstro verde que aparece quando o seu hospedeiro se enerva além da conta. No fundo, somos todos um pouco assim, o teatro tem essa incrível capacidade de colocar a nu esse universo paralelo que é a existência humana, o lado bom não existe sem o mau, o céu inexiste sem o inferno, a violência nunca será compreendida sem seu contrário e assim por diante. Todas as moedas, todas as características humanas têm o outro lado, e basta um simples clique para que o jogo da vida mude completamente. 

 

O teatro leva-nos a essa reflexão, permanentemente. Quando os textos têm a densidade e a qualidade literária deste “A lição” acabamos cada apresentação – e cada ensaio! – a pensar sobre o nosso lugar no mundo e a fragilidade da condição humana. É incrível como nenhuma outra arte tem essa capacidade de ser espelho da nossa existência. E não é um espelho que necessariamente melhore a nossa imagem, um objeto otimista. Não, é um portal que nos leva a outro lado, um labirinto, aquele lado do medo, do escuro e do desconhecido. Um portal que está sempre presente, convidativo, traiçoeiro.

 

A história termina com a criada colocando uma braçadeira no professor, arrependido da monstruosidade que acabou de cometer. “Isso vai lhe proteger, professor. É a política!”. Na braçadeira a plateia pode ver o símbolo mais terrível da história contemporânea, a cruz suástica (e essa é uma indicação precisa do autor, numa didascálica do texto original). Mais uma vez o teatro nos confronta com a realidade. Os cadáveres podem ser escondidos. A atrocidade pode ser disfarçada. Há sempre uma possibilidade de tudo ser jogado por debaixo do tapete e da palavra justiça ser levada pelo vento pela força da ignominia, da corrupção e do capital. 

 

Foi isto que sentimos, a cada ensaio. A cada repetição. E no teatro, de forma tão clara, recebemos na mesma medida do nosso esforço e do nosso investimento. Ou seja: se um texto como “A lição” exige trabalho, dedicação, para que o soco no estômago nele contido chegue na plateia, é isso que temos que fazer. Sem apelo. Sem desculpas. Suor, ossos e sangue no chão que pisamos, como diria Lorca.

 

E a gente trabalha muito. Horas e horas de ensaio. Noites, domingos, sem folgas. E temos a compensação quando, num país distante, o público aplaude de pé a qualidade do teatro madin Cabo Verde, espantados com o fato do nosso “Petit pays” ter uma arte cênica desta envergadura e maturidade. Foi assim, mais uma vez, com “A lição”, que se apresentou no Rio de Janeiro, no Festlip Brasil 2014. Parabéns à TPM Trupe Pará Moss. Obrigado ao elenco – Janaina Alves Branco, Lopes Renato e Yara Azevedo. Um agradecimento especial ao Fernando Morais por ter colaborado com o seu talento para este sucesso. Viva o teatro crioulo!