SP Escola de Teatro

O Segundo Experimento do Módulo Amarelo por Wilson Julião

O ator, encenador, roteirista e artista-educador Wilson Julião acompanhou o segundo Experimento do Módulo Amarelo da SP Escola de Teatro  – Centro de Formação das Artes do Palco, no último sábado (6), e relatou suas impressões. Leia abaixo:

 

 

Na véspera, fui acionado pelo telefone para acompanhamento e posterior produção textual acerca dos Experimentos da SP Escola de Teatro. Fiquei bem contente com o risco.

 

Sabendo pouco sobre tudo que viria, comecei o exercício de esquecer o que poderia lembrar, estratégia para entrar num processo de recepção e apreensão mais aguçado, sobretudo acerca dos processos de criação instaurados. Assim, minha amnésia e eu lembramos que encontraríamos uma série de reflexões artísticas e formulações sobre a Narratividade. Aqui, comemorei o que se passaria e me imaginei em experiência por longas horas. E então, pensei que realmente tudo narra, parece que tudo narra na marra. Algo que é relevante e insidioso. Se tudo narra, o que escolher para narrar no teatro? A amnésia falhou e lembrei-me de Peter Brook, algo do tipo [passado pelo filtro do sábado (bem) de manhã] “tudo pode, mas qualquer joça não serve…”

 

Também tive notícia que os ataques do PCC, em maio de 2006, foram o tema proposto. Interessei-me pela riqueza formal derivável, pela variabilidade de contextos possivelmente abordados e feliz pelas conexões com assuntos e matérias que me são caras, sobretudo nos trabalhos dos últimos. Feliz pela combinação explosiva que me envolvia. 

 

Então, aqui estão os textos que ora relembram o que se fixou em mim, ora descrevem alguns apontamentos que lancei nas conversas após as cenas, ora prospectam alguma forma de investigação ou pesquisa que os núcleos, juntamente com seus orientadores, podem ou não se debruçar. Também há uma brincadeira com termos correntes na época dos ataques: Cancelamentos, apagão, toque de recolher e barricadas. Esses termos indicam preponderâncias de alguns aspectos de discussão, apresentados nos subtítulos respectivos. Após cada desenvolvimento, lanço perguntas que procuram indicar algum ponto de fuga, alguma direcionalidade para investigação.

 

Posso ter errado feio, ou por redundar questões óbvias a todos, ou pela questão concreta da rapidez com que precisei aprontar a escritura. Mas ainda estou bem feliz por participar desse risco.

 

Indico também, como regra de segurança, uma rubrica: (autor entusiasmado escreve). Imaginem-me escrevendo como quem pesquisa, experimenta, provoca. Um autor tão perdido quanto as balas referidas nas cenas que vimos, mas que como elas, aos poucos percebe sua função. Assim:

 

(autor entusiasmado escreve)

 

 

Cancelamentos – Conteúdos 

 

As materialidades são interessantes agiotas dos conteúdos. Nada que esteja em cena é nulo. Neste sentido, a materialidade do corpo do ator e da atriz, músicos, operadores, presenças focadas são conteúdos e assumem status de performatividade relevante.  Tenho me interessado muito pela apropriação cênica do conjunto de singularidades, como na constituição da cena do núcleo 4, envolvida em musicalidade, jogo e cumplicidade.

 

Ali, ponderei sobre a versatilidade possível, do aproveitamento das potências, da explosão de uma equipe que parece estar em estado de latência. Equipe que ajustou o espaço, o timbre das emissões, os quadros e a composição para cada um deles. Ali, me lembrei da estrutura do teatro de revista, apenas como lastro para a sugestão de outros quadros ou composições. Também sobre a chance de exploração das plataformas de construção, investigar estilos, escolas, tendências, como num ataque simultâneo à mesma causa, mas em localidades estéticas diferentes.

 

Como no núcleo 5, quando a escolha por um juiz tornado boneco – numa adaptação da técnica bunraku – potencializa a disputa entre o marginal e o político que se fixam como ícones de cada facção. Refletimos, ali, que os dois personagens formalizam um processo que ultrapassa o espaço/tempo de suas próprias existências, incluindo, neste recorte de vida, inúmeros outros agentes. E que a técnica da manipulação do boneco pode ampliar o entendimento sobre o processo de construção das relações do primeiro plano, a disputa entre o governante e o criminoso. O jogo entre forma e conteúdo a partir de deslocamentos, fricções, justaposições e decupagens pode ser um campo muito amplo de pesquisa e experimentação.

 

Na paródia, encontramos uma via ácida para a crítica. A cena do núcleo 7, bastante amparada pela boa execução em todas as sua dramaturgias, funciona no limite do risco da queda na direção do anedótico, como bem sintetizou o formador José Fernando de Azevedo. Mas também é característica do humor a revisitação ao (f)ato inadequado para, numa espiral, tirar mais ainda desta personagem/contexto diminuto, inferior e até singelo. Dentro desta comédia, são nessas descidas espirais a cada círculo – tal como um “Dante-leone” – que podemos instaurar um momento de parada, de expiação e de tomada de consciência ante esse mundo grotesco, hiperbólico e insano que espelha nosso próprio mundo.

 

Pergunto:

Como a cena é cancelada ou interditada, nos imprimindo uma responsabilidade, uma solidariedade sobre o que deve vir em seguida? 

Como a dúvida sobre o real ou sobre um único real possível pode ser ao menos levantada?

 

Apagão  Dramaturgia

Elementos potentes estiveram em curso nesta mostra de Experimentos. A variabilidade formal indica moderada reflexão sobre as questões da narratividade e sobre o processo histórico recente. Então, o acúmulo de material nos dá a chance de avançar nosso plano. Depois de levantada uma estrutura cênica, as ações de experimentação e pesquisa em ato, como cortes, sobreposições, ajustes, lapidações, reescritas, acionamentos de dramaturgias da cena em dormência, acentos de ritmo ou arquiteturas para os encontros, podem constituir uma etapa instigante da construção teatral.

 

O núcleo 1 nos recebeu com uma estrutura teatral organizada em poucos instantes, representando um “apagão”. Como ideia, revela um resultado da acumulação de forças, o que é bastante interessante. Fico curioso sobre a incorporação do apagão como dispositivo, como instrumento, como ferramenta de jogo, como elemento acionável a qualquer linha de dramaturgia, na direção de dinamizar a construção narrativa, buscar aproximações entre matéria de pesquisa, tema abordado, modos e meios de produção. Conteúdo e forma em jogo visível e sob ataque.

 

O princípio da edição apareceu como um possível elemento de experimentação em algumas das cenas. O encadeamento, as fusões, as simultaneidades, os planos fechados e a decupagem são chances de pesquisa sobre o material já elaborado. Comentei isso depois de assistir à cena do núcleo 3, que organizou o fecho de seu Experimento num momento que se iniciava com a abertura da porta da sala de trabalho (uma abertura para o mundo dos fatos), e de lá uma figura entrava para arrastar – com uma certa dificuldade que gerou mais dramaturgia – um dos corpos lânguidos e pseudo-mortos. Após essa ação, as repetições – tão caras à Pina – culminaram no momento em que os próprios atores/performers se disponibilizavam para os próprios recolhimentos fúnebres. A simplicidade de ações e recursos, aliados a uma ótima presença, concretizou a máxima “menos é mais”. 

 

Em parentesco, fica em mim a reflexão sobre a pesquisa do núcleo 8. O universo escolhido foi o do videogame. Nele, estão colocadas leis implacáveis acerca do ser e do poder. Deste modo, imagino que a ação possa ser desvirtuar essas leis, minimizá-las ao inadequado, visto que os humanos não se hospedam nos consoles dos games. 

 

O jogo entre os elementos do universo escolhido e os dados de realidade da pesquisa são dutos intermináveis, subterrâneos e subjacentes às estruturas da encenação e do discurso. Ainda sobre a cena vista, o embate entre a lei do mundo virtual, do game, e a regra de jogo teatral ali determinada pode revelar fissuras acerca dos processos de representatividade – ou da inviabilidade destes – evocados como assunto na forma das imagens sobre o processo eleitoral atual. As contradições ali são numerosas ou numeráveis também sobre a reflexão vida e morte: irrelevante e descartável no mundo dos games, quase isso no mundo político-partidário; necessária e absolutamente poderosa no mundo das mães.

 

Pergunto:

Como o corte seco, o desvio, a cisão, a quebra, o distanciamento podem abrir espaços vazios para a ampliação da narratividade?

Como o assassinato ou a deserção de algum ponto estrutural abre espaço para a criação de possibilidades e espaços de jogo?

 

 

Toque de Recolher – Dos Aspectos Relacionais

No percurso das aberturas de sala, percebemos a recorrência de pontos de vistas atribuídos a objetos e projeções não humanas. Houve o borrifamento geral deste tipo de escolha. E foi interessante perceber o debate decorrente dessa constatação. Parece-me importante perceber essas transferências em relação ao que é dito. Porque o depoimento da bala, ou da placa, ou da conta de luz, ou da atriz iniciante, ou da bomba, em alguma medida, de fato não o são, porque ali percebo-me num teatro, numa construção de relações e, deste modo, convivo ali como uma ideia que me encontra via voz, mas que me encontra em jogo e relação com inumeráveis outras emissões expressivas. Para a narratividade, podemos refletir a potência de cada escolha dos textos, palavras, personas, cenários, músicas e tudo o mais. Podemos projetar o atrito possível entre as dramaturgias do momento em questão, em detrimento a uma democracia das visões, algo que pode promover apenas a descrição.

 

E, em especial, de como a dramaturgia das relações pode ser acionada, como quando o núcleo 6 nos recebe na porta, cordialmente, e assim estabelece uma regra de jogo. Estamos lá, estamos juntos e estamos para algo. Porém, o grupo, salvo mínima alusão posterior a essa convivência, se envolve em seus cenários, objetos e luzes, cuidadosamente articulados. Uma contradição está aí. Mas uma contradição optada poderia ser investir neste encontro e abandoná-lo, querer relação e já não querer, bater e assoprar, tornando complexa a formação desta micro unidade social que é o teatro em curso, mas também amostragem do foco da pesquisa da equipe, seja essa a formação do povo brasileiro. 

 

Pergunto:

No teatro, como as regras do convívio, do (re)convívio, hiperconvívio, ou até de desconvívio (como o conhecemos) organizam as possibilidades da experiência?

 

Barricadas – Espacialidade

É sagaz o processo múltiplo de estímulo das coordenações da SP Escola de Teatro através de um conceito, de um tema e também pela decorrente apropriação variada dos espaços destinados às aberturas de sala. Essa apropriação da topografia, arquitetura e demais elementos estimula novas formas de se olhar o espaço e novas formas de se criá-lo. Criar espaço para que algo aconteça, aqui, ou longe e depois.

 

Na cena do núcleo 7, o uso estratégico e paródico do vídeo potencializa a trajetória da cena, criando contradições (como a presença midiática no mundo do crime) e transportes (expandindo… não: podendo expandir o espaço da representação ao infinito). Na cena, algo como o poder do capital invade tudo. No teatro, podemos retaliar tudo, para ampliar a noção de tudo.

 

As escolhas do núcleo 3 incluem a audiência com linhas de emissão bastante claras. De pronto somos colocados juntos numa tela/espelho na qual nos antecedem as grades de uma prisão. Do lado de lá do espelho, estamos todos e também estamos longe, longe demais. Ou talvez atarefados pelo jorro dos muitos materiais. “Menos é mais”, coloca Marici Salomão ao final de sua ponderação, algo que me ajudou a arriscar apontamentos. Esse menos que é mais, quando alcançado, pode representar mais densidade, mais profundidade, mais política, mais relação, mais experiência, mais teatralidade.

 

Pergunto:

 

Como os limites, as fronteiras, as barreiras instauradas, paradoxalmente, podem potencializar a relação de encontro que o teatro viabiliza?

 

Instigou-me muito a organização da trajetória dos núcleos, montados e rapidamente acionados para a criação de uma obra teatral. E de como o encadeamento entre experimentação, aberturas, devolutórias e reorganizações das materialidades impõe um caráter de urgência. Urgência é uma estratégia com a qual compactuo, por tornar o risco combustível e não ameaça, por acionar o que temos de próximo e de nosso e por nos estimular a uma escrita rápida sobre uma experiência enorme.

 

E, sabem, fiquei feliz com essa urgência. 

 

(autor entusiasmado escreve) 

 

Quanto mesmo o teatro tem espaço em nossa vida?

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