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O Jogo do Ator por Ivam Cabral

Publicado em: 24/04/2012 |

“O jogo do ator não é outra coisa senão a coordenação de suas manifestações”. Esse foi o tema explorado na última semana pelo diretor executivo da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, Ivam Cabral, em seu blog, o www.terrasdecabral.com.br, no espaço reservado a reflexões. No texto, o artista percorre a teoria da Biomecânica de Meyerhold. Leia, abaixo, o artigo na íntegra.

 

 

O JOGO DO ATOR NÃO É OUTRA COISA SENÃO A COORDENAÇÃO DE SUAS MANIFESTAÇÕES

 

Por Ivam Cabral

 

Buscando superar toda a herança cultural idealista do passado, e tomando o princípio da beleza funcional e utilitária, Meyerhold (1874-1940) vai elaborar a teoria da Biomecânica.

 

A Biomecânica de Meyerhold vai estudar as ações das forças externas ao corpo humano conjugadas com as ações das forças inerentes ao sistema locomotor.

 

A arte do ator, sendo uma arte de formas plásticas no espaço, exige o estudo dos mecanismos do corpo. Isso lhe é imprescindível, porque qualquer manifestação de força (compreendendo a de um organismo vivo) está submetida às mesmas leis da mecânica (é patente que a criação de formas plásticas no espaço cênico é uma manifestação de força do organismo humano). [1]

 

Segundo o dicionário Novo Aurélio – Século XXI, Biomecânica significa:

 

1. O estudo dos fundamentos mecânicos das atividades biológicas, em especial as musculares. 2. Princípio da representação fundado na acrobacia, na dança e na estilização excessiva, visando ao desempenho não-realista e teatralizado. [2]

 

Embora a Biomecânica seja uma ciência e seu objeto de estudo seja a produção motora de seres vivos, Meyerhold nunca formulou seu método biomecânico. Assim, vamos encontrar em sua obra apenas vestígios do que ele pensava sobre a aplicação da Biomecânica aos seus atores.

 

Meyerhold era exigente na racionalização de cada movimento. Pensava que cada gesto ou movimento de seus intérpretes deveria cumprir um objetivo concreto. Dizia:

 

Se a forma é justa, o fundo, as entonações e as emoções sê-lo-ão também. [3]

 

Para ele, o intérprete não deve basear sua criação utilizando-se apenas de sua intuição ou memória. Vai dizer em outro momento:

 

É natural que os únicos sistemas de representação existentes até agora fossem a intuição e o sonho dos sentimentos. O que, no fundo, é o mesmo. Só os métodos diferem: atinge-se a intuição com o auxílio da hipnose – o ator, submerso pela emoção, não é mais senhor da sua voz nem dos seus movimentos; na ausência de controle, não poderá estar seguro de conseguir seu papel. Só alguns muito grandes atores adivinharam intuitivamente um método de representação, quer dizer o princípio da aproximação do papel, não do interior para o exterior, mas pelo contrário, do exterior para o interior. [4]

 

O jogo do ator não é outra coisa senão a coordenação de suas manifestações. Exemplificando, Meyerhold irá afirmar:

 

Representando o medo, o ator não deve começar por ter medo (a viver), depois pôr-se a correr; não deve, primeiro, correr (reflexo) e só ter medo depois, pois vê-se a correr. [5]

 

Em outras palavras: representando o medo, exprima-o através de uma ação física. Embora diferindo de Stanislavski, que irá dizer: “Frequentemente a imobilidade física é resultado direto da intensidade interior. (…) Em cena é necessário agir, não importa se exterior ou interiormente. Tudo o que acontece em cena tem um objetivo definido (…) No teatro, toda ação deve ter uma justificativa interior, deve ter lógica, coerente e verdadeira (…) e, como resultado final, temos uma atividade verdadeiramente criadora” [6], os dois propunham a inversão no processo de criação da personagem.

 

Meyerhold procurou estabelecer, através da Biomecânica, alguns conceitos de deslocação do ator em seu espaço cênico, propondo exercícios e treinamentos que tinham como objetivo uma maior compreensão e percepção do intérprete e seu instrumento de trabalho: seu corpo.

 

Dois exemplos de exercícios propostos por Meyerhold:

 

Servindo-se de certo processo, ele (o ator) agarra o corpo do seu parceiro estendido no solo, lança-o sobre os ombros e leva-o. Faz cair o corpo. Lança um disco e dispara um arco imaginário. Dá uma bofetada em seu parceiro e recebe uma (de certa maneira). Salta sobre o peito do seu parceiro e recebe-o sobre o seu. Salta para os ombros do seu parceiro e põe-se a correr levando-o, etc. [7]

 

Agarrar a mão de seu parceiro e puxar o braço, empurrar o parceiro e agarrá-lo pela garganta, etc. [8]

 

Esses exercícios serviam apenas para a preparação dos atores. Eram, geralmente, vindos da acrobacia e da dança, e serviam para “acordar” os movimentos de seus atores, tornando-os racionais e coordenados, e, assim, disponíveis para um estado criativo.

 

Meyerhold acreditava que, dessa forma, seus atores estariam prontos para uma maior liberdade expressiva. Acreditava, no entanto, na natureza “racional” e “natural” dos movimentos, e considerava que o rigor dessa preparação conferia ao intérprete uma maior maleabilidade de expressão.

 

Em seus trabalhos, utilizava-se, como demonstração, uma marionete. A partir do boneco, tirava efeitos dos mais diversos:

 

Apesar da sua máscara parada, o boneco exprimia quer a alegria – os braços abertos; quer a tristeza – a cabeça caída; ou ainda o orgulho – a cabeça inclinada para trás. Bem manejada, a máscara pode exprimir tudo o que exprime a mímica. [9]

 

Para ele, o ator deveria se conhecer totalmente. Primeiro fisicamente. Chamava essa qualidade de “autoespelho”. [10]

 

Mas a maior contribuição da Biomecânica de Meyerhold talvez aconteça no fato de que, em plena consciência corporal, o ator possa dirigir seu jogo com domínio total de suas ações. E, assim, triangular com o público em possibilidades oferecidas pelos jogos de sua expressão física, depois interna.

 

Defensor contumaz de seu sistema, irá dizer:

 

Se tomo a pose de um homem triste, posso pôr-me a experimentar a tristeza. Na minha qualidade de encenador biomecânico, cuido que o ator esteja são e alegre e que os seus nervos não se perturbem. Importa pouco que se represente uma peça triste – continuai alegres e não vos concentreis interiormente para não vos tornardes neurastênicos. [11]

 

Toda a sistemática da Biomecânica também tinha como objetivo o despertar intelectual de seus atores. Dizia:

 

Antes de tudo o ator pensa. É o pensamento que o fará tomar uma atitude triste; é o pensamento que o forçará a correr e dessa corrida nascerá o medo. [12]

 

Essa afirmação de Meyerhold, de que no eixo central do processo criador irá residir esse “ator pensante”, faz crer que, para ele, o ator é fundamental como elemento do espetáculo.

 

Ainda dentro de seu treinamento biomecânico, apostava na abstração – dos movimentos, da expressividade, da encenação como um todo. Dessa forma, a criação artística deixa de ser uma cópia do real para se tornar uma reflexão da realidade. E o ator de Meyerhold deve estar preparado para isso:

 

O ator, portanto, movimentará seu corpo-material de maneira que execute imediatamente a ordem recebida (do ator ou do encenador). Sendo a tarefa do ator a realização de uma ordem precisa, a economia dos seus meios de expressão garantirá a precisão dos movimentos que concorrem para a realização mais rápida dessa tarefa. [13]

 

O sistema biomecânico nunca chegou a consolidar-se. Durante toda a sua produção artística, Meyerhold modificou-o, ampliou-o, sistematizou-o, sem nunca torná-lo um dogma. Um sistema aberto e investigativo, e, portanto, vivo.

 

 

[1] Vzévolod Meyerhold, O teatro teatral, Lisboa, Arcádia, 1980, p. 175.

[2] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio – Século XXI, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999, p. 302.

[3] Vzévolod Meyerhold, O teatro teatral, Lisboa, Arcádia, 1980, p. 186.

[4] Idem, pp. 175-176.

[5] Idem, p. 187.

[6] Constantin Stanislavski, Manual do ator, São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 2.

[7] Vzévolod Meyerhold, O teatro teatral, Lisboa, Arcádia, 1980, p. 188.

[8] Idem, ibidem.

[9] Idem, p. 189.

[10] Idem, ibidem.

[11] Idem, p. 190.

[12] Idem, ibidem.

[13] Idem, p. 174.