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Maria Della Costa por Maurício Paroni de Castro

Publicado em: 27/03/2012 |

A Formiga e a Cigarra

 

Durante o verão, a formiga trabalhava duro, pensando no inverno. A cigarra cantava o dia todo. Chegou o inverno, a formiga tinha o que comer. A cigarra  sentia fome. A formiga disse: “Eu trabalhei duro para comer, agora; o que você fez durante o verão?” “Eu trabalhei meu canto para poder saber agora como é sofrer e poder cantar melhor ainda”, respondeu a cigarra. 

 

Essa fábula chama-se Gentile Maria Marchioro Della Costa Poloni, a mulher que conheci em 1992. Dela posso escrever. Coube a mim a honra de dirigir seu último espetáculo. Sua saída dos palcos era uma cena de morte da mãe, em típico romântico, escrita por Otávio Frias Filho. Seu pai fora quem, em 1954, ajudara na obtenção de um financiamento para a construção do teatro que leva seu nome, hoje bastante dissociado do espírito de seus fundadores. Sua atuação em “Típico Romântico” foi mal vista por um crítico que achava ter na manga outras “damas do teatro brasileiro”. “Damas do teatro”: estória de araque, inventada para criar mitos comerciais inexpressivos. Nada a ver com Maria. Por sua virtude – porque grandes atrizes são gravitadas por grandes figuras –, colocaram os pingos nos “is”: Alberto Guzik ressaltou sua sobriedade cênica; Sandro bradava da plateia seu famoso “Brava, Maria!”. Todos, de um Zé Celso a um Zé Serra, a aplaudiram como quando a seguiam anos 60, anos antes do exílio da política no teatro.

 

Formiga ou Cigarra?

 

Formiga e cigarra. Bela como sempre, falam de seu talento, mas batem na tecla da beleza física. Pouco da sua infância pobre, da sua tenácia no trabalho e da generosidade frutífera. Fernanda Montenegro, por exemplo, fez o seu grande primeiro papel, a Ersilia Drei, de “Vestir os Nus”, de Pirandello, porque Maria cedeu ao apelo de Gianni Ratto para isso. A produção era de Sandro, seu marido. Trouxeram o Gianni da Itália para dirigir a companhia que era dela. Qual outra atriz teria feito o mesmo? Não conheço outra.

 

Formiga ou Cigarra?

 

Formiga e cigarra. Lembro de que ela chegava duas horas – duas horas! – antes do início do ensaio, para estudar sozinha e se concentrar em seu trabalho. Isso com mais de mais de 50 anos de teatro. Ela estudava, ela tinha talento. Da mesma forma que Sérgio Cardoso. Mas não os fazia pesar. Eu vinha da Itália para dirigir o espetáculo e não esperava tanta dedicação e humildade. Foi impressionante ver como se comportou diante da baixezas constantes de dois colegas de palco naquele espetáculo. Continuava educada e disciplinada.

 

Formiga ou Cigarra?

 

Formiga e cigarra. Lembro de que tinha uma vida de amor e cumplicidade com seu marido, o histórico produtor e iluminador Sandro Poloni. Poucas vezes se viu alguém viver uma vida conjugal e profissional tão bem e por tanto tempo em nosso meio. Sem moralismos, mas com a moral de quem é artista honesta, foi lição fundamental saber que é preciso muito equilíbrio emocional para se representar loucamente alguma coisa.

 

Formiga ou Cigarra?

 

Formiga e cigarra.  Pioneiros em repertório de alto nível, Maria e Sandro estreiam “Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues, em 1948, no Teatro Popular de Arte; ; a partir de 1954, inauguram seu teatro da Rua Paim com “O Canto da Catovia”, de Jean Anouilh. Decio de Almeida Prado descreve o que foi a sua marca interpretativa: “Ninguém representa demais, nem de menos, ninguém procura a ênfase que ainda hoje se associa, às vezes, erradamente, ao gênero histórico. A representação é simples, natural, sóbria”. Ali, encenam Sartre, Feydeau, Jorge Andrade, Tennessee Williams, Brecht, Arthur Miller, Plínio Marcos, Albee.

 

Formiga ou Cigarra?

 

Formiga e cigarra. Ela mergulhava no sofrimento para refrescar sua arte. Sofrimento era arte. Era parte de um artesanato, uma técnica de vida. Tinha elegância para isso. Via-se isso nos ensaios. Ela respeitava o sofrimento das pessoas comuns, representando-os do jeito mais humano que podia.  Com competência, com consciência social, com elegância. Com “Gimba” (1959), levou Gianfrancesco Guarnieri aos palcos do mundo – numa época em que se tentava passar uma imagem folclórica de nossa pobreza atávica. Foi a atriz brasileira que mais se aproximou da práxis de Bertold Brecht, que me perdoem alguns ideólogos pafúncio-bancários de certa cena atual. Por isso, ela foi reverenciada por Helen Weigel, quando interpretou a(s) primeira(s) Shen te/ Shui te brasileira(s), de “A Alma Boa de Set Suan”.

 

Formiga ou Cigarra?

 

Formiga e cigarra. Quando fomos literalmente roubados pelo produtor do espetáculo, ela continuou a representar de maneira impecável. Não ofendeu seu trabalho em relação às ofensas dos anos negros de produção cultural. Anos que ainda vivemos hoje, não obstante a aparência de recursos maiores.

 

Formiga ou Cigarra?

 

Formiga e cigarra. Começou de maneira brilhante, viveu de maneira brilhante e continua assim, em seu hotel Coxixo, em Parati, fundado com Sandro, quando ninguém sonhava o potencial artístico daquele tesouro cultural. Era quase impossível produzir sob a ditadura militar. Utilizou sua fama para fazer conhecer, à maioria dos brasileiros, a beleza da cidade hoje conhecida mundialmente como sede da Flip. Sua atuação de alto nível, de amor e de política – sim, de política –, no palco e na vida, conferiu à  impermanência de ofício de atriz, a imortalidade da Joana d’Arc, esculpida por Brecheret, que um dia cantou nos palcos.

 

 

 

Veja os verbetes de Maurício Paroni de Castro e Maria Della Costa.

 

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